Elbert foi médico da resistência francesa na época da ocupação da França pela Alemanha, durante a II Guerra Mundial, período que vai do ano de 1940 até a retomada da França pelas Potências Aliadas. Aqueles anos, contou ele certa vez, foram os piores anos de sua vida e o fizeram desistir por completo da Medicina.
Em 15 de julho de 1940, quando Estrasburgo - França foi tomada pela Alemanha, ele tinha trinta e seis anos de idade e era professor na Universidade local. Aquela afronta despertou nele um sentimento de revolta e de comiseração. Ele sentiu-se obrigado a fazer algo que pudesse, efetivamente, ajudar o maior número possível de pessoas, mas não sabia o quê. Então, em 1941, abandonou tudo, inclusive a Universidade de Estrasburgo, e ingressou num grupo de resistência organizado naquela região, pois a ocupação da França pela Alemanha, dizia ele, era algo inaceitável.
Elbert, juntamente com outros membros da resistência francesa, foi para a região de Dordogne, onde vários moradores de Estrasburgo se refugiaram, fugindo do exército alemão. Nessa região, numa parte mais afastada da cidade, nas proximidades do Rio Dordogne, organizaram um hospital de campanha.
Mal haviam terminado de montar o hospital, os feridos começaram a chegar às dezenas e depois às centenas. No hospital improvisado trabalhavam ele, mais dois médicos e cinco enfermeiras para atender a todos que chegavam.
Eles não tinham tempo para se alimentar nem para dormir direito. Faziam turnos de dezesseis por oito, ou seja, trabalhavam dezesseis horas ininterruptas e descansavam oito, isso tudo na teoria. O certo é que muitas vezes chegavam a ficar setenta e duas horas sem dormir e se alimentando muito mal.
As vítimas dos ataques terrestres ou aéreos do exército alemão e que eram levadas para o seu hospital improvisado, eram tanto civis quanto militares, tanto adultos quanto crianças.
Com todo aquele cenário, uma dúvida o assolava. Como saber a quem atender primeiro? Como decidir quem viveria ou quem morreria, porque somente aquelas oito pessoas não tinham como atender a todos que acudiam ao hospital.
Então, numa das poucas noites de sono que Elbert teve durante aquele período, enquanto estava deitado em uma cama improvisada, apareceu para ele uma criatura vestida com uma túnica preta, com um grande capuz que encobria o que deveria ser seu rosto e uma enorme foice. Ele sabia que se tratava do Ceifador ou, como alguns costumavam chamar, o Anjo da Morte.
A criatura, após ficar um breve instante parada e em silêncio, falou com sua voz gutural:
- Elbert, vejo sua luta para salvar aqueles que não têm mais nenhuma chance de sobreviver. Você quer roubar aqueles que já me foram destinados?
- Bobagem! Gritou Elbert. Eles somente serão seus quando exalarem o último suspiro.
- Você ousa me contrariar, homenzinho insignificante? A criatura vociferou tomando dimensões gigantescas.
Apavorado, Elbert falou:
- Não, senhor! O que o senhor deseja de mim? Sou apenas um pobre mortal tentando salvar outras vidas nessa guerra absurda.
- Mas, vocês são poucos e não podem salvar a todos. Quero fazer um pacto com você. Eu posso lhe ajudar.
- Do que se trata, senhor? Que pacto seria possível de se fazer com o Anjo da Morte para ajudar a salvar vidas? Eu sei que o senhor vem para ceifar vidas e não salvá-las.
Então o Ceifador explicou-lhe que o pacto seria da seguinte forma: Todas as vezes que ele fosse atender um paciente, ele saberia de antemão se haveria chance de salvá-lo ou não. Se o Anjo da Morte aparecesse ao lado do paciente, Elbert não deveria perder tempo atendendo-o, pois sua morte era certa. Ele deveria aproveitar esse tempo para atender outros pacientes que poderiam ser salvos. Elbert aceitou o pacto.
Enquanto o doutor dormia, ouviu-se uma grande explosão. Elbert acordou sobressaltado e começou a ouvir os gritos clamando por sua ajuda. Ele já não sabia se aquilo tudo havia sido um pesadelo ou realmente ele estivera conversando com o Anjo da Morte.
Passaram alguns dias e nada mudou na rotina do hospital de campanha em Dordogne. Ele já achava que tudo realmente não passava de coisas da sua cabeça devido ao cansaço. Os feridos continuavam chegando em grande quantidade de forma que era impossível atender a todos.
Passados sete dias, Elbert já havia esquecido o pesadelo e estava atendendo um soldado que havia perdido um dos braços, estava com uma enorme perfuração na região do abdômen e com uma enorme hemorragia. Ele não estava conseguindo estancar o sangue que já começava a empossar embaixo da maca. Então, ele levantou a cabeça e levou um susto - o Ceifador estava lá, parado ao lado do paciente. Elbert parou, quase que no mesmo instante, o atendimento. Então a criatura desapareceu.
- Vocês viram aquilo? Perguntou ele aos demais integrantes da equipe médica e de enfermagem.
- Aquilo o quê, Dr. Elbert? O senhor deve estar muito cansado e tendo alucinações.
- Não, estava parado bem ali com sua túnica preta, capuz e a foice! Gritou ele.
- Vá descansar, o senhor já está há muitas noites sem dormir.
- Não, estou bem. Há muito trabalho e muitas vidas para salvar.
Então, Elbert retomou o trabalho. Aquele paciente que ele havia parado de atender acabou falecendo em menos de 15 minutos e, nesse meio tempo, ele conseguiu salvar outras três vidas.
E assim ocorreu várias vezes, enquanto eles estavam trabalhando naquele hospital improvisado. Elbert acabou acostumando-se com a presença do Ceifador entre as macas do hospital. Não foram poucas as vezes que ele apareceu, mas também não foram poucas as vidas que o Doutor salvou.
Mas uma coisa sempre o perturbou muito. Ele havia aceitado o pacto, mas não havia perguntado qual seria a paga pela ajuda do Anjo da Morte.
Quando as Nações Aliadas desembarcaram na Normandia e aos poucos foram libertando toda a Europa, os pacientes do hospital de campanha foram sendo levados para hospitais de verdade. Assim, Elbert que estava enojado da medicina, estava livre. Daquele dia em diante, nunca mais utilizou-se da arte médica e o Ceifador nunca mais havia lhe aparecido.
Muitos anos após todo o ocorrido, quando Elbert já estava com cem anos e vivendo no Asilo de Nantes, o Anjo da Morte veio lhe fazer uma visita. Elbert tratou-lhe como um velho amigo.
- Olá, velho amigo! Que belo trabalho em equipe nós fizemos naqueles tristes anos.
- Acha mesmo, Elbert? Acha mesmo que sou teu amigo?
- Claro, quantas vidas eu pude salvar por causa da tua ajuda.
- Mas quantas você nem tentou salvar? Tem certeza de que elas não poderiam ser salvas?
Então, Elbert entendeu qual seria o preço que ele teria que pagar - o tormento de saber que ele deixou muitos feridos morrerem sem nem tentar ajudá-los e isso, para ele, era uma coisa inconcebível.
Hoje, aos cento e quatro anos, ele não tem bem certeza de que fora visitado pelo Ceifador. O tormento acabou deixando-o alheio à realidade. Não fala com ninguém, nem com os enfermeiros do asilo que o tratam muito bem. Vive em um mundo paralelo, corroído pelas lembranças das vidas que ele nem tentou salvar.
Conto publicado na Antologia "Segunda Guerra Mundial - Memórias e Fragmentos".
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CONTOS QUE NÃO SE CONTAM
Short StoryExistem histórias que não deveriam ser contadas ou que deveriam parmanecer, para sempre, na escuridão ou no esquecimento. Nesta oportunidade, o escritor Fernando Nunes flerta com o imaginário obscuro. Nesta obra, teremos contos que variam entre os g...