O Senhor Spike nasceu durante a II Guerra Mundial e não conheceu o pai que morrera durante a invasão da Normandia. Quando tinha treze anos, sua mãe morreu de complicações pulmonares devido ao vício por cigarros e ele foi enviado para um abrigo de meninos.Aos dezoito anos, deixou o abrigo para seguir a carreira militar - à qual se entregou de corpo e alma. Alistou-se ao Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA e chegou ao posto de 1º Tenente. Era um atirador de elite, um Sniper dos Marines. Spike participou de todas as guerras e ocupações que pode, promovidas pelos EUA, parecia que aquilo preenchia o vazio que ele sentia por não ter conhecido o pai e por ter perdido sua mãe em tão tenra idade. O exército era sua família.
Em 1970, durante a Guerra do Vietnã, ele cometeu um erro que custou sua carreira militar. Fora enviado para neutralizar um importante líder norte-vietnamita, mas fracassou. Ao não eliminar o alvo, condenou toda uma Divisão do Exército Americano à morte. Sabendo das consequências da sua falha, em desespero tentou fugir, mas acabou sendo capturado. Foi levado preso aos EUA e se não tivesse conseguido escapar, teria enfrentado a Corte Marcial. Parecia que sua vida havia perdido o sentido.
Fugiu durante anos, trocando sistematicamente de cidade. Quando pensava ter despistado o "Estado Americano", era encontrado e precisava fugir novamente. Em 1973, encontrou uma pequena vila ao sopé de uma montanha nevada no interior dos EUA. Ficava localizada a cinco quilômetros da cidade mais próxima. Era uma minúscula vila esquecida pelo mundo que contava com vinte casas.
Atormentado pelo seu erro e caçado pelo Tio Sam que o havia criado, jamais conseguiu se reerguer, ou constituir uma família - vivia só. Desde então, esperava o dia em que seria encontrado.
Na vila, sua casa fica próxima do final da rua. O interior dela parecia um acampamento militar. Sua cama era num saco de dormir no chão próximo à lareira que era mantida sempre acesa por não haver calefação na casa. Suas roupas ficavam em sacolas e em caixas, pois não tinha armário para guardá-las. Sobre a mesa, deixava dois rifles de assalto, além daquele que usava normalmente na sua vigília, e vários cartuchos de munição. Sua comida, somente enlatados, era preparada num fogareiro a gás muito semelhante ao utilizado por ele na Guerra do Vietnã. Assim ele viveu seus últimos quarenta e nove anos.
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Durante os anos em que esteve escondido, o Sr. Spike foi julgado pelo Exército à revelia. Seu processo levou muito tempo para ser decidido. Muitas pessoas foram ouvidas e ao final, em 2016, foi absolvido. Ficou comprovado no processo que ele não fora responsável pela morte de seus irmãos de farda. Isso quer dizer que, mesmo que tivesse acertado o seu alvo, aquela tragédia teria ocorrido, porque a Divisão foi morta por fogo amigo. Desde então, o Estado Americano está a sua procura com um pedido formal de desculpas e com intuito de lhe oportunizar um final de vida mais digno.
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Atualmente, o Sr. Spike com oitenta e três anos é um homem franzino, cabelo ruivo e espigado, unhas compridas e com problemas de saúde decorrentes da idade e da vida de privações que levou durante os últimos quarenta e nove anos. Já não enxerga tão bem quanto antes e apresenta uma certa dificuldade para se locomover, mas suas mãos continuam firmes.
- Ainda sou capaz de acertar um tiro a quinhentas jardas. - Dizia ele.
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Hoje é vinte e quatro de dezembro de 2022, véspera de Natal. O inverno é o mais rigoroso dos últimos anos. Sua lembrança não registra a ocorrência de outro inverno como esse desde que se mudou para esse vilarejo nos idos de 1973.
Como faz todos os dias, levantou-se, tomou um café preto com um resto de comida que havia sobrado do jantar, colocou mais lenha na lareira, antes que o fogo apagasse, e foi para sua cadeira colocada estrategicamente ao lado da janela da frente. Ali, ele tinha tudo o que precisava: sua arma e um ótimo campo de visão. Assim passou os seus últimos anos, de tocaia, para jamais ser surpreendido pelo inimigo.
Apesar do frio, a janela estava entreaberta para que ele pudesse colocar o cano do rifle para fora e atirar, se necessário. Era um excelente soldado e não seria pego despreparado.
O movimento na rua, hoje, estava diferente do normal, pessoas andavam apressadas com muitas sacolas e outras com pinheirinhos de Natal. Todos queriam chegar logo em casa para preparar a festa. Aquele movimento todo não agradava o Sr. Spike.
- Todo ano é a mesma coisa - pensou ele - muita gente carregando sacolas com presente e pinheirinhos para enfeitar suas casas e eu aqui eternamente escondido. Seja Natal, Ação de Graças, ou Ano Novo... não importa.
Para os moradores da Vila, Spike era um velho esquisito e antissocial que vivia recluso em sua casa. Ninguém conhecia a sua história e ele não fazia nenhuma questão que as pessoas pensassem algo diferente disso. Muitas vezes, corria com as crianças que brincavam perto da sua casa para manter essa mística sobre a sua figura. Achava que isso poderia mantê-lo longe do risco de ser descoberto.
Logo após o meio-dia, ele começou a perceber uma movimentação diferente na rua em frente a sua casa. Havia uma circulação, maior do que a normal, de carros. Não eram os carros dos seus vizinhos, eram carros grandes e pretos. Da sua janela, podia ver um homem parado na esquina observando a sua casa. Esse homem de terno preto já estava há uns quarenta minutos ali parado. Somando-se a toda essa movimentação estranha, havia agora o barulho de um helicóptero sobrevoando sua casa.
Os moradores da vizinhança começaram a ficar assustados com tamanha movimentação. Em pouco tempo, somente aqueles homens e carros estranhos eram vistos na rua.
O velho levantou-se de sua cadeira e foi buscar mais munição para sua arma.
- Hoje teremos trabalho - pensou ele - preciso estar preparado. Eu não serei capturado por esses ingratos.
Do outro lado da rua, parou um carro que ele não conhecia, mas a insígnia nele, sim - era um veículo tático do exército americano.
Spike, antevendo a invasão de sua casa, ficou paralisado por alguns segundos. Recobrando os sentidos, começou a ficar com a visão embaçada, a tremer e a ter náuseas. Fazia muito tempo que não entrava em combate e a pressão dos acontecimentos que estavam por vir desestabilizaram-no violentamente.
Do carro desceu um homem aparentando quarenta anos e fardado com o uniforme dos Marines. Na mão trazia uma pasta que, devido a sua ansiedade, não conseguiu identificar. O fuzileiro vinha escoltado por outros dois muito bem armados.
Aquilo o deixou ainda mais abalado:
- Um irmão de farda veio me prender!!! Poderia ser qualquer outro, mas não um fuzileiro!!!
Vagarosamente, com as mãos trêmulas, pegou a munição que estava ao seu lado, colocou em seu rifle e gritou:
- Não cheguem mais perto senão eu atiro.
Os homens pararam.
- 1º Tenente Spike, eu sou o Tenente Coronel Olcott do Corpo de Fuzileiros Navais do Exército Americano, precisamos conversar.
- Não temos nada para conversar. Os senhores têm trinta segundos para se retirarem antes que eu comece a atirar.
- Não faça nenhuma bobagem, Sr. Spike.
- Vinte segundos.
- Trazemos notícias sobre o seu julgamento.
- Dez segundos.
- Sr. Spike, espere as notícias são...
Ouviu-se um estampido e o Tenente Olcott caiu no chão. Havia levado um tiro certeiro no peito.
Aquela situação toda foi além daquilo que o Sr. Spike poderia suportar com seus oitenta e três anos e com a saúde debilita.
Outro estampido é ouvido. Aqueles que escoltavam o Tenente, assustados, se jogam no chão. Faz-se um silêncio sepulcral. Os soldados, após alguns minutos de silêncio, levantam-se e vão cuidadosamente em direção à casa. Chamam pelo Sr. Spike que não responde. Então, derrubam a porta e entraram correndo prontos para atirar.
Uma vez dentro da casa, encontraram o Sr. Spike atirado em sua cadeira com metade da cabeça arrancada com a força do tiro. A dor de matar um irmão de farda foi demais para ele, preferiu tirar a própria vida a conviver com ela.
Conto publicado na Antologia "Contos de um Natal sem Luz - III"
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CONTOS QUE NÃO SE CONTAM
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