É quase um pesadelo particular.
"Siga por 800 metros e, então, chegará ao seu destino".
Quando escuto a voz robótica do GPS do táxi falar essas palavras, fecho os olhos com força, tentando entender se quero chorar ou cavar um buraco aqui mesmo, no carpete do carro, e de alguma maneira desaparecer.
O choque de estar tão perto da casa dos meus tios me atinge em cheio e, como se não bastasse essa sensação horrível de que faltam apenas 800 metros para o caminho que escolhi para mim se concretizar, o carro ainda para num semáforo bem ao lado de um outdoor enorme com as escadarias vazias de um dos postais mais famosos de Arraial.
O aperto no peito me faz franzir a testa.
Toda aquela imensidão azul, o verde ao lado da escadaria, aquele sentimento de paz, frescor e liberdade, tão destoante do céu cinza que me cerca.
Não "me despedir das poucas amizades que tinha", ou "falar com o garoto que eu gostava que a gente não tinha mais como se ver", nada disso partiu meu coração de fato. Quer dizer, nem mesmo me despedir da minha mãe, pelo amor de Deus.
Mas aquela vista... saber que vou precisar ficar longe do meu snorkel por não sei quanto tempo, que meu cabelo não vai mais ficar seco por causa do sal, que minha pele não vai mais se arrepiar quando a brisa bater logo depois de um mergulho no mar... Isso, sim, leva embora um pedaço do meu peito.
Parece que estou num pesadelo, onde não há oceano para me distrair dos meus problemas. Por um momento, penso que talvez eu devesse ter ficado no Rio, na casa da minha avó. Tipo, e daí que ela já é muito velhinha para me receber? Pelo menos eu teria a praia.
Coloco All by myself nos fones de ouvido, porque me parece propício, e verifico a chegada de uma nova mensagem do meu tio. Aviso que já estou quase à porta no momento em que Celine Dion canta "don't wanna be", o que acho bastante gentil da parte dela.
Mesmo que eu não tenha convivido com o tio Álvaro e mal o conheça, porque nossa família é quase toda do Rio de Janeiro e ele veio para São Paulo quando eu ainda era criança, me sinto à vontade com a ideia de morar com ele e sua esposa, Cecília. Ou, pelo menos, tento me convencer disso. Não há motivos para não me sentir, não é? São meus tios.
Bem, isso não vale muita coisa se você cresceu com Harry Potter, claro, mas, pelo que mamãe contava nas raras vezes em que não estava agarrada ao pescoço de Mário, seu agora marido, eles não se pareciam em nada com os Dursleys. Segundo ela, meu tio era um pouquinho reservado, mas Cecília, a quem ainda não decidi se chamarei de tia, tinha uma capacidade incomparável de fazer as pessoas se sentirem em casa e assar os bolos mais incríveis do universo. Sorte de seus filhos. E agora minha também.
Ao estacionarmos, o vidro se abre devagar e o motorista me pede para conferir o endereço. Sinto uma lufada instantânea de ar frio e me encolho. O homem solta uma risada simpática.
— Você deve ser carioca.
Ergo um olhar atravessado quando ele explica que o clima está bastante ameno, a não ser para alguém que venha de um forno como o Rio de Janeiro.
Abro a porta do táxi e salto dele, indo para a calçada. Dou alguns passos até que esteja olhando a fachada da casa, cercada por um grande muro e um portão meio enferrujado.
Ergo o braço para alcançar a campainha e, depois de tocar, me viro de costas, observando o taxista tirar as malas do veículo. Ele coloca as maiores na calçada e me entrega as menores. Eu as agarro com força.
O portão se abre de repente, e um calafrio percorre minha espinha quando penso em já ter que falar com meu anfitrião (supondo que foi meu tio quem o abriu e não um fantasma ou coisa assim. Porque não acredito em fantasmas. A não ser que eu esteja sozinha em casa. Nesse caso, posso considerar cercar as portas com sal, como aprendi no meu seriado preferido).
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Letras de Seda (Degustação)
أدب المراهقينTudo o que Amora Machado gostaria era ser uma adolescente normal, com uma família normal. Mas o que a restou foi morar com os tios desconhecidos, já que viver na Bolívia com sua mãe grávida e o padrasto detestável não era exatamente o que ela havia...