I - Sob o Umbral dos Falecidos

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 O som da campainha ecoou pelos cômodos solitários da mansão. Roberto atravessou a sala e atendeu a porta. Do lado de fora, em pé sobre a calçada de pedra, estava Flávio, seu amigo de muitos anos. Chovia forte.

 "Fico contente que tenha aceitado meu convite.", disse Roberto, trazendo o amigo pra dentro de casa.

 "Não entendo como se deixou levar por esse tipo de coisa.", respondeu Flávio, chacoalhando o chapéu e o pesado manto para tirar o excesso de água da chuva torrencial que desabava sobre a cidade naquela noite. Ao pendurar seus pertences no cabide, continuou. "Meia dúzia de tolices, ditas por uma benzedeira? Francamente... Até Houdini não acredita nesse tipo de bobagem.", dito isso, sentou - se numa poltrona no centro da grande sala.

 Roberto serviu-lhe um copo de vinho, acomodando-se no sofá em frente ao amigo.

 "Você não tem idéia do que tenho passado dentro desta casa, desde a morte de meu pai, Flávio.", Roberto disse, em tom sério.

 "Tem acontecido coisas , comigo e com quem quer que esteja debaixo deste teto, que a racionalidade com a qual estamos acostumados não pode explicar.

 Flávio tomou um gole de vinho e se voltou para o amigo. "Ainda está muito abalado com o suicídio de seu pai. Os últimos meses não foram fáceis para você. Posso compreender."

 "Não se trata de descontrole emocional. Em absoluto.", respondeu Roberto. "Tenho total consciência do que vi e certeza de não ser nenhum sintoma de estafa mental ou problema psicológico."

 "Tudo bem. Tudo bem. Não foi isso que eu quis dizer.", Flávio bebeu novamente. Um longo gole. "Mas me diga. A benzedeira já não deveria estar aqui? Passa das onze horas. Não foi o horário que combinou com ela, conforme me disse na carta?"

 "Seu nome é Idalina e não é nenhuma benzedeira, Flávio. É uma médium."

 "Sei. Daqueles discípulos de Allan Kardec, correto?"

 "Isso mesmo. Mas você tem razão.", Roberto tirou o relógio de dentro da lapela, no interior de seu casaco, e examinou as horas. "Ela já deveria estar aqui."

 Como que em resposta a sua observação, a campainha tocou. "Pois é. Nossa convidada chegou." Brincou Flávio.

 Roberto atendeu a porta. Trouxe pra dentro da casa uma senhora de cabelos brancos e bem arrumados, vestida com roupas sóbrias, típicas da idade, cinzentas e discretas. Carregava, sobre os ombros um xale verde-escuro. A chuva, lá fora, havia cessado.

 "Boa noite, senhores.", Cumprimentou. Roberto e Flávio responderam educadamente. "O ambiente está bastante tranqüilo, tanto no reino material quanto no espiritual. Obteremos resultados satisfatórios com nossos irmãos desencarnados esta noite."

 "Evidentemente.", Completou Flávio, esforçando-se para não rir. Roberto lançou-lhe um olhar de reprovação e, em seguida, conduziu, ele e a idosa visitante, para outro cômodo da mansão, uma sala com grandes janelas cobertas por cortinas, com uma mesa redonda ao centro. Os três tomaram seus lugares, com Idalina posicionada entre os dois amigos.

 A médium inquiriu. "Podemos começar, senhores?"

 Ambos consentiram.

 Teve início o ritual. "Almas nesta casa!", dizia Idalina, num tom respeitoso, porem exaltado. "Estamos desejosos em saber suas vontades e anseios. Fazei-nos conhecedores deles!", Seguiu-se um longo momento de silêncio. Flávio ia dizer alguma coisa quando foi interrompido pela médium, que começou a gemer e contorcer-se, na cadeira onde estava.

 "Ela está bem?", perguntou o rapaz, preocupado. "Sim. Fique tranqüilo. É parte do processo.", respondeu Roberto.

 Num rompante espasmático, Idalina saltou da cadeira com força e violência que não condiziam com sua estatura física. Jogou-se no chão e lá ficou, imóvel, repetindo frases ininteligíveis, em voz sussurrada.

A Ameaça dos MortosOnde histórias criam vida. Descubra agora