ú l t i m o .

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1996, Brasil.

12 anos

Mamãe estava jogada na cama desacordado já faziam mais de vinte e quatro horas. Ela tinha tomado vários remédios. Papai estava para o trabalho e Bernardo dormindo, eu tinha que arrumar a comido do papai, se não fizesse ele me prenderia no porão como na semana passada. Ele tinha me prendido lá por três dias, eu ainda tinha machucados abertos nas pernas, nas coxas e dos pulsos. E também nas costas aonde ele tinha batido.

Não queria que papai chegasse, ele iria fazer de novo. Ele sempre fazia quando mamãe estava daquele jeito.

Lembro de ter deixado o jantar arrumado na mesa e ido tomar um banho, depois fiquei no meu quarto. Ouvi quando a caminhonete velha do papai chegou e suas botas fizeram barulho no assoalho. Fiquei deitada e encolhida na cama, meu corpo estava dolorido da última vez. Papai me machucou mais do que o costume. Lembro que tinha uma marca de mordida no meu colo, ele tinha me mordido. Ele também tinha me batido enquanto fazia. Foi porque eu tinha tentado fugir, papai nunca mais tinha deixado eu sair de casa depois que fiz onze anos, foi quando meu corpo começou a mudar. Eu tinha seios, bem pequenos ainda, mas tinha. Meu quadril também tinha ficado mais largo. Mamãe tinha me dado alguns absorventes quando desceu pela primeira vez, pouca coisa depois que fiz doze anos. Papai disse que eu era nojenta e me bateu por isso. Eu sabia que fazia parte, mas papai disse que eu era impura, disse que tinha nojo de mim. Ele me deixou presa por isso. Quando me soltou ele fez aquilo de novo. Mamãe me deu um remédio depois, disse que era pra prevenir. Mas papai vinha toda noite e então mamãe comprou uma caixa de preservativos e deixou na cabeceira da minha cama. Papai sempre usava agora. Depois que ele saia do meu quarto, mamãe vinha falar chorando comigo, ela pedia desculpa. Eu nunca dizia nada, eu não desculpava ela nunca. A culpa era do papai, eu sabia, mas ela era minha mamãe e nunca tentava impedir. Eu chorava depois que ela saía, mas só depois pra ela não ficar tão deprimida. Eu amava a mamãe apesar de tudo, também amava o Bernardo.

Nesse dia não tinha sido diferente, papai foi no meu quarto depois de um tempo e fez tudo de novo. Ele me bateu, me arranhou, machucou. Tinha cortes de suas unhas por todo meu corpo. Em baixo de meus seios principalmente, ele sempre segurava e arranhava ali. Mas quando mamãe veio aqui, ela falou outras coisas, ela sabia que papai já estava dormindo, por isso falou.

— Eu procurei um advogado, Mellanie — ela sussurrava tão baixo que eu quase não conseguia escutar. — Ele disse que vai nos ajudar, filha. Ele foi tão bom comigo — ela tinha dado um sorriso. — Nós vamos embora daqui.

Lembro que ela estava tão feliz que até eu consegui sorrir, mesmo depois do que ele tinha feito. Eu senti esperança, fiquei contando os segundos pra amanhecer e papai ir trabalhar, só então mamãe ligaria para o tal advogado ir nos buscar de lá. Mas não foi isso o que aconteceu.

Era de noite quando papai saiu de casa, ele tinha dito que era sua folga. Quando saiu não falou onde ia. Mamãe me olhou e foi para o telefone, Bernardo estava nos braços dela e eu sorria. Ela tinha o cartão do tal advogado na mão. Quando ela começou a falar, ouvi um estouro e demorei pra perceber que era a porta da frente de abrindo. Papai entrou enraivecido, nunca tinha visto tanta raiva nele. Ele jogou mamãe na parede e jogou o Bernardo pra longe. Meu irmãozinho bateu a cabeça na quina da mesa de centro de vidro. Eu vi o sangue escorrendo e meu irmãozinho imóvel. Mamãe gritou muito e papai também, de raiva.

— Filho! Bernardo! — Mamãe tentou correr, mas papai a impediu, ele bateu com a mão fechada no rosto dela.

— Viu o que fez? — Ele gritava e batia nela. — Você matou nosso filho! — Papai gritava com raiva.

Corri e peguei Bernardo, coloquei o ouvido sobre seu peito tentando escutar alguma coisa, mas não tinha nada. Então lembro de colocar o dedo na frente do nariz dele. Ele não respirava mais. Meu corpo paralisou, eu vi papai batendo na mamãe, ela gritava pra que eu fosse embora, mas eu não conseguia sair do lugar. Até que mamãe não conseguiu mais gritar. Papai continua batendo nela, o sangue voava. Eu corri pra cozinha e peguei uma faca, eu já tinha visto isso nos filmes. E foi só o que pensei. Não conseguia sentir meu corpo, tudo parecia estar dormente e eu era apenas uma telespectadora de um filme de terror. Corri de enfiei nas costas do papai, lembro do grito dele e da sua expressão ao me olhar. Era de horror e choque e dor. Papai me xingou e me jogou na mesa de vidro, ela quebrou e eu cai ao lado do meu irmãozinho. Eu senti os cortes de abrindo nas minhas costas.

Papai correu até mim e ficou​ em cima, eu sabia que a faca não tinha feito quase nada nele, não tinha força suficiente pra poder enfiar mais fundo e machuca-lo de verdade. Mas assim que papai se debruçou sobre mim, eu vi um dos vários pedaços de vidro. Esperei ele se abaixar e levantei o vidro, papai não teve tempo de parar antes da arma improvisada furar seu olho, e também machucar minha mão, abrindo um corte profundo. Ele caiu para o lado gritando, aproveitei e me levantei, puxei a faca das suas costas e o ouvi gritando meu nome.

— Mellanie! O que está fazendo? — Ele se virou com a mão sobre o vidro dentro do seu olho. Eu sentia meus joelhos tremerem. Lembro de ter ajoelhado ao lado do corpo dele. — Eu sou seu pai, Mellanie! Não faça isso, filhinha. Sou seu pai e te amo. — Ele pedia clemência quando viu que eu tinha levantado a faca, eu não senti remorso, não senti pena. Eu sentia raiva. Muita raiva. E quando eu fechei as duas mãos no cabo da faca e abaixei com toda força que consegui reunir até adentrar seu cérebro, pelo outro olho, o matando, eu senti alívio.

Papai caiu morto e seu sangue voou em mim. Cortei meus braços e pernas ao sair me arrastando até mamãe, peguei o cartão que ela segurava, minhas mãos tremiam e eu chorava muito. Sabia que o irmão do papai, Armand, iria vir pra cá pois papai estava de folga e o tio sempre vinha nesse dias.

— Me ajuda — falei no telefone quando atenderam, olhei no cartão vendo o nome. — Andrew Petterson, me ajuda — implorei.

O que aconteceu? Você é a filha da Luana?

— Sim... Mamãe está sangrando, papai também e o Bernardo... E o irmão do papai está chegando... Ele vai me machucar...

Se esconda, docinho, eu estou indo.

Eu soltei o telefone e corri até mamãe, ela não respirava. Então corri até o armário que mamãe escondia Bernardo e eu quando o titio Armand vinha. Fechei a porta e fiquei lá. Eu não consegui chorar depois, eu estava suja de sangue, meu e dos outros. Lembrei de mamãe sussurrando quando vinha buscar Bernardo e eu aqui, ela nos abraçava e nos beijava. "Vai ficar tudo bem", ela dizia. Mas nunca ficava, mamãe era machucada na noite seguinte e nas outras. Eu amava a mamãe e o Bernardo, eu odiava papai e titio.

Quando escutei a porta se abrindo fiquei com medo, mas várias vozes começaram a falar e uma tinha me chamado atenção, eu a ouvi no telefone. Abri o armário e lembro de ter visto pela primeira vez o Andrew. Ele me abraçou forte e me pegou no colo, falou que eu estava salva. Que eu ficaria bem. Eu confiei, eu acreditei. Ele me levou para uma ambulância e colocaram um cobertor em mim, tinha muitas pessoas nos olhando na rua. Eu lembro te ter visto os olhos azuis iguais do papai do outro lado da rua, titio estava parado lá me olhando. Mas Andrew ficou na minha frente e quando ele saiu, não vi mais ninguém. Andrew falava que eu ficaria bem, eu sabia que era mentira, mas acreditei. Eu abracei ele e pedi que prometesse que não me abandonasse. Eu confiei nele, eu amei ele desde que ouvi sua voz preocupada no telefone. Andrew prometeu que cuidaria de mim, que nunca me abandonaria. Andrew cumpriu. Ele sempre cumpria suas promessas.

E eu soube que essa dor nunca iria passar, nunca iria sair de dentro de mim. Aconteça o que acontecer, eu nunca serei inteira.

Obrigada por ter lido até aqui. Segunda história, continuação dessa, já está disponível no meu perfil com o nome Mellanie - Intocável.

Sei que o final provavelmente não agradou a todos, mas é assim a história da Mellanie. Uma história triste. De qualquer forma deixe seu comentário, ficarei feliz em saber sua opinião 💜.

Obrigada novamente!

Kess.

29.03.2017

Mellanie - Lembranças [1° história].Onde histórias criam vida. Descubra agora