s e g u n d o .

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1992, Brasil.

8 anos

Escutava papai gritando com a mamãe e me encolhia na cama toda vez, depois os paços da mamãe subindo as escadas rapidamente, então a porta do meu quarto foi aberta.

— Venha, querida — mamãe me chamou, o Bernardo segurava a mão dela. — Seu tio Ângelo vai chegar logo, logo.

Arregalei os olhos e senti meu coração disparando, sabia muito bem o que aconteceria. Peguei a mão da mamãe e nós descemos as escadas, ela abriu a porta do armário que deveria ser usado para guardar coisas de limpeza, mas mamãe nos escondia lá toda vez que o tio, irmão do papai, ia lá pra casa. Lembro que mamãe sorriu e nos beijou, nos cobriu com o cobertor que ela já tinha colocado lá dentro, assim como algumas almofadas, e depois saiu fechando o armário e trancando. Bernardo me olhava triste, eu sorria pra ele e oferecia biscoito que mamãe tinha me dado antes de entrarmos, sabia que iriamos acabar de come-los antes que saíssemos de dentro do lugar e ficaríamos com fome o resto do tempo que permanecêssemos ali.

Não demorou para que a voz do tio Armand fosse ouvida, papai falava com ele e riam juntos. Bernardo e eu dormimos, sempre era assim, mas chegava uma hora que éramos acordados pelos gritos de mamãe. Eu sabia que eles a machucavam, mamãe sempre voltava pra nos buscar toda machucada. As vezes ela andava torta, tinha cortes no corpo e rosto, ou estava inchada de pancadas. Mamãe sempre dizia estar bem, mas sempre era mentira. Bernardo me abraçava e eu tampava seus​ ouvidos​ para ele não escutar. Papai gritava xingamentos feios assim como seu irmão, o tio Armand. Esse não era o nome dele de verdade, eu sabia, pelo menos não o primeiro nome. Papai sempre o chamava pelo primeiro nome. Ângelo. Mas de anjo ele nunca teve nada. Eu o odiava. Sempre que me via, quando papai nos levava até a casa dele, tio Armand ficava falando coisas nojentas pra mim. Dizia que eu seria dele em algum momento, que eu era sua sobrinha preferida. Mas eu era a única sobrinha dele. Ele também passava a mão em mim, era nojento, eu odiava ir na casa dele. Sua mulher não fazia nada, só ficava rindo e olhando ele fazer aquilo. O nome dela era Bárbara. Eu a achava bonita. Ela era muito bonita. A cor da sua pele era mais clara que a minha, era morena. Seus olhos eram mais claro que os meus, eram verdes. Seu corpo era de mulher adulta. Bonita com os cabelos escuros lisos. Eu poderia gostar dela se ela impedisse o tio de me tocar, mas ela nunca fez. Eu nunca soube se papai e o titio a machucavam como faziam com a mamãe. Mas eu achava que não, nunca tinha escutado ela gritando quando estávamos lá.

Quando não conseguíamos escutar mais os gritos, eu ficava preocupada e ao mesmo tempo aliviada. Preocupada por ter acontecido algo com mamãe. E aliviada por ela não estar mais com dor. Mas ela só não estava mais gritando, talvez mesmo assim ainda sentisse dor. Eu achava que sim.

Não sei se os vizinhos também escutavam, mas ninguém nunca fez nada. Ninguém nunca ajudou mamãe e nós.

Uma vez na escola, alguns homens da polícia foram lá conversar com os alunos. Eles deram palestras. Eu fui a única interessada, eles falaram sobre os papais baterem nas mamães. Disseram que era errado. Eu falei com um deles. Ele era chamado de Silva, era um policial legal. Ele me disse que se alguma coisa tivesse acontecendo na minha casa, eu deveria ligar para o número 190 e pedir ajuda. Isso nunca mais saiu daqui minha cabeça. Mas quando eu liguei, aproveitando que papai estava trabalhando e mamãe dormindo, uma mulher me atendeu e ficou brava dizendo que não iria cair naquela brincadeira. Eu fiquei triste. O policial Silva disse que eles iriam me ajudar, disse que os policias eram amigos.

Nunca mais liguei pra eles, nunca mais deu também. Tinha medo do papai ou a mamãe aparecerem, a mamãe iria falar para o papai e ele iria me bater e me deixar presa lá em baixo. Eu não queria isso.

Bernardo me olhava e dizia estar com fome, os biscoitos já tinham acabado. Não sei quanto tempo nós já tínhamos ficado lá dentro, sei que era bastante. Meu estômago roncava alto e o Bernardo chorava baixinho.

— Vai ficar tudo bem, Be — sorria pra ele e o abraçava, ele me apertava e dizia me amar. — Também te amo, Be — respondia porque era verdade. Eu amava ele e mamãe.

Lembro das baratas que tinham lá, eram várias. Nojentas e fedidas. Eu as odiava também, mas preferia ficar com elas do que com papai e titio. Lembro que elas ficavam andando ao nosso redor e algumas passavam por cima de nós, eu sentia vontade de correr, tinha medo de ficar doente também e do Bernardo adoecer. Por isso sempre o deixava em um lugar que elas não iam, no cantinho comigo o protegendo. Se elas fossem, iriam passar por mim e eu iria mata-las ou espanta-las, mas não deixaria passarem no Bernardo. Ele era meu irmãozinho caçula e eu o iria proteger.

Quando mamãe abriu a porta de novo, ela estava com um olho roxo e um corte no lábio. Andava mancando e tinha uma faixa no pulso esquerdo. Mas mesmo assim ela se ajoelhou ao nosso lado e nos abraçou chorando, falando que estava tudo bem e que nos amava.

— Te amo também, mamãe — eu repeti a abraçando forte. Ela sorriu e nos tirou de lá de dentro.

Lembro que era manhã, uma manhã fria. Mamãe preparou comida pra gente, bastante comida. Eu tomei banho e dei banho no Bernardo e então nós fomos comer. Papai já estava trabalhando e o tio já tinha ido embora. Foi uma manhã divertida, mamãe ligou o rádio e sorria pra nós, nos dava beijos e dizia que nos amava. Eu também a amava.

Fiquem a vontade para comentar 💜.


Kess.

16.03.2017

Mellanie - Lembranças [1° história].Onde histórias criam vida. Descubra agora