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O dia amanheceu com o corpo do sacerdote pendurado no portão principal, a pele do rosto dilacerada por estranhos buracos tornava-o uma visão herética para muitos. Apenas para Bernauer, um homem que nunca temeu a mão de Deus, ver o estado do sacerdote fazia bem. Afligiu-se durante uma longa noite que fosse de seu sangue o corpo pendurado no portão principal. Ela conseguiu, pensou aliviado. O sino na noite anterior avisava sobre uma morte e Bernauer passou a madrugada em vigília, sentando em um banco duro, com os olhos em cima de Agenor e os ouvidos atentos à porta, aguardando notícias de Agnes. Zelando por seus dois filhos. Atemorizado e orgulhoso em medidas oscilantes. Apenas um pai.

Como as agruras da paternidade não atingem somente os plebeus, o rei digeria com ódio as ações do filho, e o sangue do sacerdote não seria suficiente para acalmá-lo. Ao fechar os olhos, revisitava a cena de depravação e insolência. Seu herdeiro enlaçado pelos feitiços de uma criatura ordinária, proferindo um discurso ensaiado, palavras que não cabiam em sua boca. Ambos nus, enrolados em trapos sebentos, exalando suores pecaminosos que penetraram seu nariz sem autorização. Seu filho ousou dizer com um orgulho animalesco que não haveria volta. "Eu a desposei, pai!", bradou, com suor escorrendo pelo rosto apesar do frio, mostrando-lhe um lençol sujo do sangue impuro e do ato de pecado.

Ernesto retirou-se, pois desejava matar o filho, arrastá-lo pelos cabelos até as masmorras, arrancar de sua pele qualquer lembrança daquela meretriz. Passaria anos, talvez, mas sabia como fazer um homem se esquecer ou se lembrar. O ódio do rei não foi maior que o amor do pai. Apenas por isso o corpo pendurado no portão era o do sacerdote. Entretanto nunca seria suficiente, nunca.


Veias Abertas Não Sangram Para SempreOnde histórias criam vida. Descubra agora