-VI-

49 14 2
                                    

-VI-

Passaram-se dois anos. A idade castigava seu corpo, todavia era o medo o culpado por enfraquecer sua carne. Agnes, a boa filha, provinha seu sustento, e se ela o erguia de um lado, Agenor afundava-o do outro. Mas o velho Bernauer o amava. Foi esse tipo de amor que o impediu de revelar quem era o culpado por tanta desgraça recair naquele lugarejo. Bernauer não foi um homem bom, sabia disso. Se fosse verdade que os filhos costumavam superar seus pais, Agenor queria fazê-lo. Com perfeição e ambição ainda maiores. O homúnculo desejava um modo de deixar aquele trapo chamado de corpo. Ele não queria os braços tortos ou rosto disforme. Com frequência, fugia no meio da madrugada e retornava com as peças que desejava. Pessoas vivas e desesperadas, Agenor apontava para o objeto de seu desejo, sua obsessão. Fosse a cabeça, um braço ou olho de cor diferente. Bernauer tinha medo de perdê-lo para a noite e para a morte. Quando seu filho saía, o perigo de ele ser descoberto impedia que Bernauer dormisse. E cada nova cirurgia era um risco alto demais, pois o filho poderia não despertar.

Sem escolha ou forças para resistir a Agenor, cada vês mais forte e inteligente, Bernauer transcendeu a seus pensamentos mais obscuros, submeteu-se a incontáveis atrocidades e alcançou o impossível. Pela segunda vez. As respostas que sua ciência não fornecia Agenor respondia com outras fontes. Bernauer, um homem da ciência, não acreditava em tais coisas, sempre rebatia dizendo e explicando a impossibilidade de dar certo. Fora vencido por um punhado de palavras estranhas e rituais cada vez mais sinistros. Eles nunca falhavam. O alto preço a pegar ficava armazenado em um buraco que o homúnculo escavou, fundo e escuro como um túmulo gigante. Lá dentro, ele abrigava não mortos, e sim pessoas vivas, seu alimento. Assim, ele fez o impossível mais uma vez, deu um novo corpo a seu filho.

Ninguém mais poderia chamá-lo de homúnculo. Certamente ele seria conhecido pelo mundo. Obcecado pela simetria, Agenor construiu, junto com ele, um corpo. O mais belo de todos, perfeito. Agenor não era capaz de entender quão horrível era aquilo que eles faziam. Porém, Bernauer sim, e isso o matou. Sequer esperou Agenor acordar, trancou todo o subsolo, passou uma corda em volta do pescoço e pulou de um banco. Ironicamente aquele homem aceitava um filho vindo dos mortos, a vida construída a partir da morte, todavia sua mente não fora capaz de aceitar a vida mantida às custas do sangue dos vivos. Talvez tivesse se arrependido, não o suficiente para tentar consertar seus erros, apenas o bastante para pular de um banco.

Veias Abertas Não Sangram Para SempreOnde histórias criam vida. Descubra agora