-VIII-

55 14 8
                                    

-VIII-

Poucas pessoas desejam a morte como aqueles que veem nela a liberdade e o fim de toda sua dor. Durante um dia, Agnes implorou por ela. Sua pele preenchida de manchas, seus cabelos e os olhos... todos errados. Vermelhos demais e intensos além da compreensão. Então resolveram arrancar dela tudo que lembrava a cor do demônio. E assim fizeram. Cada pelo de seu corpo foi raspado sem pudor ou cuidado, só isso bastava para desgraçar a vida de uma mulher que nunca ficou em completa nudez diante do próprio marido.

Naquele ato sórdido mutilavam sua alma, tirando dela o controle do seu corpo e sua dignidade. Foi pendurada pelos braços, seus pés mal tocavam o chão. Mexia-se pouco, porque os ombros estalavam em dores lancinantes. Quatro mãos hábeis e duas navalhas quase cegas fizeram o grosso trabalho. E Agnes viu, com horror e vergonha, os olhares de repulsa do rei e seus guardas. Não tinha coragem de olhar por muito tempo, mas, quando olhava, assistia a um misto de nojo e luxúria em seus rostos. Os homens que raspavam seu corpo ignoravam o fato de existir pele delicada embaixo dos pelos, e seu corpo recebeu pequenos veios de sangue que escorriam feito lágrimas. Agnes fechava os olhos, apertados dentro do rosto. Tentando reter o grito, mordia os lábios e contorcia a cabeça, queria fugir de si mesma.

— A puta está a gostar... — o homem à sua direita disse. Sua boca exalava ar fétido e de seu sorriso poucos dentes apontavam, todos podres. Era Sillas, um traidor. — Olhe como fecha as pernas — zombou ele, mas aquilo era uma tentativa de se proteger. A única que ainda dispunha. — Vamos fazer de baixo a alto.

Sillas sussurrou essas palavras no ouvido de Agnes. E no instante em que sentiu as mãos do segundo homem, um gordo com cheiro de álcool e suor, ela gritou. As mãos dele abriram-lhe as pernas. Os gritos ricochetearam nas paredes de pedra enegrecida e sumiram pelas valas de excrementos das masmorras. Ainda não havia desistido de lutar, jogou o corpo para frente e para trás, o gordo ajoelhado com a cabeça em sem ventre caiu. O rei ordenou que a fizessem parar de gritar sem motivo, enquanto os soldados se divertiam. Ernesto repetiu as palavras — Sem motivo —, saboreando as letras junto ao caneco de vinho.

O gordo levantou-se furioso, puxou o mamilo de Agnes e encostou a navalha na pele rósea. O medo a fazia gritar continuamente, sua voz falhara algumas vezes, mas ela continuava. Como se calar diante de tanto horror? De alguma forma doentia, o homem tomou o bico enrijecido de seu seio como sinal de prazer. Concentrado, deslizou a navalha sobre ela, o ferro corria, dando pequenos solavancos onde existia reentrâncias, pequenos dentes, como uma serra. Sillas a segurava pelo tronco, e todos ouviram seu braço estalar e o ângulo estranho que seu ombro formou. Enfim desmaiou. Entretanto era pouco, Agnes queria morrer.

— Confesse tuas bruxarias... Filha do demônio... Meretriz do inferno...

Ouviu as palavras ao longe, o ar à sua volta deslocando-se depressa, seguido de calor intenso. O som seco e forte acordou seu corpo e a dor, sua mente. Permaneceu vários minutos olhando o seio, o lugar que ele deveria estar. Dali minava sangue e pedaços de carne esfacelada. Uma tira de pele recheada de gordura pulsava, pendurada e sacolejando, seguindo sua respiração. O ferro gritava ao som da fornalha e os homens voltavam segurando o aparelho incandescente. Ninguém precisava dizer, o cheiro de carne queimada, as bolhas e as queimaduras que preenchiam o lugar onde deveria estar o seio direito, explicavam o que aquela ferramenta estranha seria. Um estripador de seios.

— Misericórdia... — Agnes sussurrou. Uma grossa película envolvia seus olhos e não eram apenas lágrimas. Mas onde havia desespero seus inquisidores enxergavam truques ardilosos. — Misericórdia, Senhor.

— Revele teus atos em comunhão com o demônio, bruxa!

— Senhor. Ajude-me, Senhor, tua filha clama por ti, Senhor. Misericórdia! — E conforme o ferro se aproximava ela gritava mais alto. — Misericórdia! Não! Misericórdia! — O Rei achava ser o senhor a quem ela clamava, mas Agnes suplicava ao próprio Deus, aquele a quem dedicava horas, todas as semanas de sua vida.

— Revele os nomes de tuas iguais, serva do demônio. Diga-me seus nomes!

— Misericórdia!

— E aponte suas casas! — o homem gritava, aproximando o ferro vermelho.

— Eu imploro, eu imploro. Não! Não!

— E aponte seus filhos! E revele seus pecados! — ele continuava, até o metal em brasa encostar na pele de Agnes.

— Senhor! Não! Não! Misericórdia. — Foi nesse momento que Agnes desistiu de lutar. Gritou ainda por horas, porém era só um reflexo de dor, involuntário. Não clamou mais por seu Deus, pois, se Ele existia, não poderia ouvi-la, não das masmorras.

— Bruxa! — ele gritou, o ferro envolvendo todo o seio, e sua voz competiu com o chiado da pele, entretanto nada foi mais alto ou mais terrível que aquele som. Fino, quase eterno, o último grito embebido em esperança. O som de um inocente adentrando o inferno.

Agnes Bernauer, gritou até seu último momento com vida, achava que Deus não conseguia ouvi-la, mas alguém em algum lugar poderia. Ela não tinha como saber, seus gritos eram ouvidos fora do castelo e, quase toda a comunidade sabia do ocorrido. E a capela nunca ficou tão cheia como naquela noite. Alguns pediram ajuda para Agnes, pediram a ajuda de Deus, esse seria o maior ato de rebeldia daquela gente. E em nome desse Deus, seu corpo, com um coração ainda batendo, foi carregado até a ponte. Agnes não confessou seus atos de bruxaria. Como poderia? Era inocente. Sem sua confissão o rei tinha pressa em executar logo a sentença, pois tão logo Alberto retornasse, Agnes teria uma chance de escapar.

Arrastada pelas ruas, podia ouvir as vozes. Bruxa! Maldita! Eram as mesmas vozes que murmuravam na capela pedidos de ajuda. Se à noite aquelas pessoas pediam para Deus silenciar o pranto de Agnes, durante o dia proferiam xingamentos, aplaudiam suas feridas e bradavam sua dor. Os inquisidores amarraram em seus pés quilos de pedras e jogaram-na no rio Danúbio. Se Agnes sobrevivesse, eles provariam que era uma bruxa. Apensar, é claro, de não haver dúvida alguma. Os inocentes não retornam do sacrifício. Ela morreu. Seu corpo foi levado pelo rio, mas seus gritos nunca seriam esquecidos pelas paredes das masmorras de Vohburg. Sua dor nunca acabou e continuou a reverberar até muito depois de sua morte. Porque, para algumas pessoas, a morte não é o fim.

Veias Abertas Não Sangram Para SempreOnde histórias criam vida. Descubra agora