Os Meninos

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Não sei porque eles comemoram tanto. Quem é este tal de Mundo Sob as Nuvens mesmo? Sei que o estudamos na escola, mais não havia qualquer troca entre o nosso e aquele mundo desde a época da minha tata tataravó da minha tata tataravó, ou seja, muito tempo atrás.

Há gente gritando na rua, comemorando. Não durará muito tempo, pois é proibido exaltar-se desse modo. Dizem que consumimos mais gás oxigênio assim, e ele está acabando. Aliás, esse gás acabando é outra história antiga, mas todos mostram-se sempre muito preocupados com isso. Ficam o tempo todo nos dizendo: "não ria por que isso gasta gás oxigênio", "não corra por que gastamos mais oxigênio quando ficamos ofegantes", dá até vontade de dizer "é, mais é sempre viável gastar gás oxigênio para lembrar-nos que não temos vida aqui em baixo".

Na verdade, o fato de que pertencemos a um Mundo Subterrâneo é outra história da qual não acredito sem mais provas. É tudo muito claro aqui, não deveria ser escuro igual aqueles buracos onde catamos aquelas pedras que os adultos teimam em dizer que são preciosas? Olha, eu só não discuto o fato delas serem preciosas ou não, porque no fim das contas elas são meu ganha pão aqui "em baixo". A propósito, meu nome é Aisó. Meus pais morreram a alguns anos, quando fecharam o pedaço da cidade em que morávamos e desligaram o tal gás que nos sustenta. É o que dizem, eu nunca voltei lá. Principalmente por que eu não sei voltar para lá, da mesma maneira que não sei como vim parar aqui. E é esse não saber que me irrita tanto.

Nesse instante estou me dirigindo ao porão da casa do Carlinhos. Quer dizer, a casa não é dele, não de verdade. Até onde eu sei, ele também não tem pais. Como todos os outros meninos. Enfim, estou indo até lá porque há um buraco recém descoberto por nós, e há muito trabalho a fazer antes que a polícia descubra. Sinceramente, eu prefiro ficar longe do xadrez por "gasto excessivo de oxigênio não autorizado" e "roubo ilegal de pedrinhas do governo". É LÓGICO QUE É ILEGAL, E É LÓGICO QUE EU NÃO DOU A MÍNIMA PARA ISSO!!!

A casa do Carlinhos fica no final da rua Curiós, no distrito Q. Se eu não me engano, eu morava no distrito J e isso não ajuda em nada já que nossas linhas férreas são uma bagunça, caso isso interesse a alguém. Quando finalmente cheguei na casa, o Gordo estava dançando na calçada para convencer os garotos a deixá-lo entrar. Isso é sempre engraçado de assistir, mas os garotos costumam dizer que a cara que ele faz quando me vê pulando o muro é simplesmente impagável. Não é atoa que eu sempre faço isso, já que a gargalhada sempre toma conta de todos nós.

Contando com o Gordo e eu, já éramos cinco:

O Carlinhos, dono da casa e um dos mais velhos;

O João, o nosso recordista de visitas ao xadrez;

O Gabriel, pai de todos (ele é o nosso recordista de quantas vezes é possível mentir para o mesmo policial e não ser pego);

O Gordo (ninguém sabe o nome verdadeiro desse cara) e eu.

- Onde estão o Hide e a Paula? - perguntei. Hide é sempre o primeiro a chegar; e a Paula é a sua sombra ~Paula é um menino, a gente só o chama assim por que ele fica pistola~.

- E como que a gente ia saber? Eles somem sem avisar! - murmurou o Gabriel, claramente furioso. Além de estar sempre preocupado com a gente, ele detesta atrasos.

- Eu pensei que eles estariam com você, Aisó - declarou Carlinhos.

- Comigo? - perguntei - Por que eles estariam comigo? Nós nem conversamos.

- Aqueles dois não conversam com ninguém, quase - murmurou o Gabriel, igual a muita velha rabugenta por ai.

- Por que a gente não desce de uma vez? Isso aqui é um tédio - Disse o João, com pose dramática e tudo.

- Não podemos, é o Hide que verifica se é seguro.

- Isso sem dizer que é ele que nos prende nos equipamentos - murmurou o Carlinhos, ligeiramente envergonhado.

- E se isso não for o bastante, João, lembra que é ele quem sempre salva a sua vida - falei.

- Ah, pelo amor de Deus gente, ele não é tudo isso também. Podemos sobreviver umas duas horinhas sem ele, não é? - começou o João - E Ai-sol-sinha, por favor colabore! Você sempre defende o Hide, nem parece que é minha irmã.

- Mas cara, eu não sou sua irmã. E não me chame assim.

- Agora é, portanto, colabore.

- Eu não sou obrigada a isso. Carlinhos, tem comida por aqui?

- Olha, o Gordo foi pra cozinha faz uns belos cinco minutos...

- Mais que droga Gordo! - gritei e corri para a cozinha.

- AH ISSO MESMO, FALEM MAL DO GORDO FAMINTO E DEPOIS DIGAM QUE SOMOS TODOS UMA FAMÍLIA GRANDE, FELIZ E CARIDOSA! - Bradou o Gordo.

Todos riram.

O Gordo não estava comendo, estava cozinhando. Na verdade, é isso o que ele mais faz, mas certas piadas nunca morrem. Tecnicamente falando, esse gordo não é gordo por "consumir mais calorias do que gasta", ele tem mesmo é um problema na tireoide.

- E ai, o que temos para hoje, Gordo? - perguntei.

- Então, o meu plano era um cozimento apropriado com o trampo de mineiração - ele disse, afinando a voz para que parecesse a minha.

- Correção rápida: o seu plano era produzir um cardápio apropriado com o nosso trabalho de mineração. continue.

- Mais temos um irresponsável cuidando da casa que não sabe adequirir alimentação.

- Mas temos um irresponsável cuidando da casa que não sabe adquirir alimentos, Gordo! - Corrigi.

- Foi o que eu disse.

- Não foi não!

- Foi sim!

- Será possível que vocês não consigam passar um dia sem brigar? - Perguntou o Gabriel - Até parecem crianças!

- Nós somos crianças, Gabe. E a culpa não é minha que o Gordo não sabe ler um dicionário.

- A culpa não é minha se você gosta de dizer que tem o que não tem e que sabe o que não sabe.

- E o Quico?

- Quem raios é Quico, Aisó?

- Caraca Gordo, a cada dia que passa você fica mais burro ou fez mestrado?

- Chega, os dois. Já tá bom. Aisó, vai com o João e o Carlinhos procurar o Hide e a Paula na delegacia, por favor. Eu ajudo o Gordo - ordenou o Gabriel. Já tinha utilizado o pano de prato para bater na bunda do Gordo antes de entregá-lo ao Gabriel quando o Hide e a Paula entraram na cozinha junto com os outros.

- Galera, senta aí. Agora a cobra vai fumar.

- Mais já? Nem pegamos as pedras ainda! - O João gritou.

- Completamente sem graça - eu declarei.

Meninos PerdidosOnde histórias criam vida. Descubra agora