A proposta de Hide

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Hide é o mais velho de nós, seguido pelo Carlinhos, pelo João e pelo Gabriel. Ele tem 17 anos, e quase nunca sorri. A gente vive seguindo os passos dele de pertinho, tentando descobrir alguma coisa da vida dele. Nunca da certo, ele sempre percebe antes ou despista a gente perto das linhas de trêm. Ele sabe que a gente não sabe se orientar por lá.Acontece que quando ele fala, todo mundo fala junto, tentando chamar atenção. Não entendo direito não, mais o Hide tem um quê de magia assim, que encantam e assustam. E nós sempre fomos muito fãs de coisas com esse quê de magia.
Então quando o Paula disse que a cobra ia fumar a gente fez pouco caso, rimos, fizemos piada. Só levamos a sério quando o Hide levantou a voz e disse que era assunto sério. Até me mandou sair da sala, disse que não era coisa de criança. Precisei de toda coragem que tenho pra responder olhando aquele cara nos olhos:
- Nós estamos na cozinha - eu disse -, e se for sério mesmo, cedo ou tarde eu entro no enrosco. Né?
Senti todo mundo prender a respiração. Não que o Hide seja bravo, é só que a gente conhece ele tão pouco e ele fala tão pouco que essa acaba sendo a única ideia presa na nossa cabeça. Afinal foi ele quem chegou do nada e, tão rápido como veio, tomou conta do lugar todo, de todo mundo. Ele quase nunca fala, mais quando fala, nós escutamos e obedecemos. Bem, exceto quando a ordem vem pra mim.
Pra minha surpresa, o Hide abriu um sorrisinho de canto.
- Quantos anos você tem mesmo, Aisó? - ele perguntou.
- Nove.
- Tá, pode ficar então - ele decidiu. Fiquei tentada a perguntar o por que, já que não acredito que nove seja alguma idade excepcional ou coida assim. Só que ele me assusta um pouco.
Todo mundo sentou na mesa, e o Hide deu um tapinha no ombro da Paula, que começou a falar:
- Vocês perceberam, enquanto vinham para cá que todos estavam alegres, celebrando pelas ruas?
Todo mundo assentiu com a cabeça, com excessão de Carlinhos, que passou o dia em casa.
- Alguém sabe o por quê? - Continuou a Paula.
Olhei ao redor da mesa. Estavam todos os meninos de cabeça baixa, como na época das provas orais.
- Eu ouvi alguém dizendo que receberam mensagens do Mundo Sob as Nuvens, né? - perguntei. O Hide tá me encarando, Gabriel, me protege!
- Mais do que apenas mensagens, Ai-sol-sinha...
- Seu apelido não é tão feio pra você necessitar me chamar assim, Paula.
O Gordo não segurou a risada, e a Paula me lançou um olhar assassino.
- Olha aqui, sua...
- Nem pense em completar essa frase, seu filho da puta - O Gabriel disse, levantando-se. Como eu disse antes, o Gabe é o paizão da turma. Nunca fale mal dos filhos de ninguém, principalmente dos filhos de Gabe.
A Paula abriu a boca pra responder, mas o João foi mais rápido:
- Olha lá, olha, ele tá nervoso!
Pensem agora na única pessoa que você odeia de verdade, aquela que tem uma voz tão irritante, um TUDO tão irritante que impossível suportar. É assim que a Paula vê o João. Tanto que já esperávamos até com certa ansiedade que eles se atracassem e caíssem no chão, socando-se.
Uma parte de mim acha isso extremamente doentio, mas a outra parte adora. Adora de um modo que quase me fez segurar o Hide para que ele não parasse a briga. Mas ele fez isso, separou os dois e os nossos gritos foram cessados com um rápido olhar do mesmo. Como eu disse, ele nos fascina e amedronta, tudo ao mesmo tempo.
- Eu não quero saber nunca mais de um episódio como este, entenderam? - Hide disse, seu lábio inferior tremia; mas sabíamos que não era de frio - Com ninguém. Daqui.
Nunca vi aqueles garotos tão assustados, e olha que já passamos por muitas coisas. Hide olhou nos olhos de cada um, e todos assentiram que sim, que compreenderam, por "livre e espontânea pressão". Aquele meu sorriso malvado já estava até exposto na minha cara: eu jamais deixaria que eles esquecessem da forma como olhavam o Hide, aquela perfeita cara de cachorrinho culpado.
Foi quando o Hide virou-se para mim que eu percebi que era meio impossível não usar aquela cara de cachorrinho. Provavelmente era a única maneira de sair vivo daquela troca de olhares.
- E você, Aisó - ele disse, ainda me encarando com aquele olhar penetrante - não quero que apoie qualquer tipo de briga. Nunca. Entendeu?
Eu não respondi. Fiquei paralisada. Hide com certeza é perigoso, mas também é uma das nossas poucas certezas de segurança. Eu queria perguntar o por que, destesto não saber das coisas direito. Mas a outra parte minha, aquela que tinha medo dele, chocava-se de uma forma tão brutal com meu outro lado que me tornava uma boneca sem reação tão patética quanto as pernas bambas dos meus amigos.
Por fim, apenas maneei a cabeça em afirmativa, como todos tinham feito.
- Ótimo. Vamos precisar disso, por que você estava certa Aisó. Cedo ou tarde, você se meteria no enrosco: todos nós estamos. E só vamos conseguir se fizermos isso juntos - Hide disse, ainda olhava para mim. Mas, de repente virou-se para os outros e repetiu - Todos nós. Juntos.
Mais alguns segundos de puro silêncio. Foi quando a curiosidade finalmente venceu o medo, e a pergunta se fez presente:
- O que está acontecendo?!
E o Hide com toda a paciência do mundo explicou:
- Como o Yuri estava dizendo, não foi exatamente mensagens que recebemos do Mundo Sob as Nuvens. Foram instruções. Querem que a gente suba até a superfície, e encontre algum dos pontos que nos permitirão subir até o Mundo Sob das Nuvens. Fizeram parecer fácil, mas não é. E o governo sabe disso.
"Eles vão nos caçar, eu tenho certeza. Vão querer que sejamos os primeiros a subir, vão dizer que é pelo nosso futuro. Também é mentira. Vão nos enviar para lá porque somos criminosos, porque não temos nada em comum com eles. Porque não se importam conosco".
- Bem, nós certamente não nos importamos com eles também - declarou o João, nós concordamos. O olho dele estava roxo. Hide não deu a mínima para o comentário dele. Apenas continuou:
- Quero que venham comigo até a superfície. Sem qualquer contato com o governo. Vamos subir e descer algumas vezes, para verificar e planejar nossa saída definitiva. Mas vamos fazer isso por conta própria. Aceitam?
Não foi preciso pensar muito: somos um grupo que odeia o governo, sempre se vira sozinho, e que certamente não quer ser caçado e forçado a fazer qualquer coisa - por mais que essa seja tentadora -, nossa resposta foi sim.
Hide começou a explicar o plano, mas logo viu que não estávamos com cabeça para aquilo. A vontade de conhecer algo novo era tão excitante quanto a companhia de Hide: era certo que seria divertido. Para nos acalmar, fomos garimpar lá embaixo mais uma vez. Mesmo no escuro, eu conseguia sentir que o Hide estava sorrindo diante da nossa animação.
Por outro lado a Paula me parecia meio... Assustado.
- Ei, Aisó - Chamou-me o Gordo. Ele estava ofegante ainda, embora já estivéssemos estirados no chão da sala a mais de meia hora - você percebeu, não é?
- Percebi o que, Gordo?
- Que o Hide... Fala que... Nem... Você.
Eu tive que rir, porque a possibilidade de eu ser parecida com o Hide, não preciso nem dizer, é outra coisa na qual não acredito sem mais provas.

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