Yuri

0 0 0
                                    

Já se sentiu exausto?
É dessa maneira que me sinto toda vez que venho garimpar uma dessas minas que os garotos acham. O suor, o esforço físico, e aquelas perguntas que nunca saem da minha cabeça...
Acho que o pior de tudo não é sequer o cansaço. É o barulho. Esses caras estão sempre fazendo barulho: Gabriel está sempre se certificando se todos estão bem; Carlinhos e aquele detestável do João estão sempre discutindo quanto a algo (e ainda assim trabalham!); o Gordo está sempre reclamando e parece que quanto mais ela trabalha, mais Aisó cria forças para ficar cantando aquela mesma música infantil da qual ela sequer lembra a letra.
É frustante. Não, é irritante certamente.
- Cansado? - Hide me perguntou, sua mão estava no meu ombro.
- Um pouco - Respondi, mas voltei a garimpar com mais força depois que ele saiu.
Hide.
Eu e Hide nos conhecemos a muito tempo. Estudamos juntos, numa escola normal. Mais isso foi antes de começarmos a trabalhar para o governo. E é por isso que estamos aqui. Estamos em missão. Nosso objetivo é levar o primeiro grupo à superfície. Um grupo de teste. E esse grupo, que certamente não durará mais que algumas poucas horas lá em cima, são essas pessoas que conseguem transformar um cansativo trabalho nas minas em uma grande piada.
Mas não estou mal por isso, óbvio. Não suporto boa parte dessas pessoas. São marginais, no fim das contas. Essa mina é propriedade do governo. Gordo deveria estar na escola e Aisó com alguma moça que lhe ensinasse seus afazeres como mulher. No entanto Aisó está aqui na mina empurrando um carrinho lotado que o Gordo e o Hide levarão para a sala lá em cima, onde dividirão o conteúdo para todo mundo. Já havia cogitado entregá-la a alguém do governo, para que fosse educada apropriadamente. Precisamos de mulheres para a reprodução, mesmo agora onde a perspectiva de futuro parece nula aqui dentro. Mas já é tarde para ela, é bocuda de mais. Rebelde de mais. E mais importante: Hide desistiu dela quando a deixou ficar na cozinha, aquela hora. Ouvi ela dizer obscenidades sobre o governo de maneira que mais ninguém teria coragem. De alguma forma, ela sabe muito bem o que está acontecendo. Infelizmente, de forma deturpada. Acha que somos inimigos e, portanto, é ainda mais perigosa do que todos os outros.
É errado, certamente. Estar aqui, fingindo amizade ou simpatia e depois mandá-los para morrer. Só não é tão errado quanto o desprezo que esses caras tem com nosso bem mais precioso: o oxigênio.
Mas isso não vem ao caso. Eu estava tentando entender porque estou tão preocupado. Ah, sim. É ele de novo: Hide. Ele está obviamente um nível acima do meu. Tecnicamente somos parceiros, mas até agora ele tem tomado a dianteira. Foi ele quem conquistou a confiança desse grupo, ele desistiu de Aisó, ele formou aquela mentira deslavada sozinho. Mais importante: não acredito que seja tudo. Tem mais alguma coisa, eu posso sentir. E eu preciso descobrir o que é, rápido.
- Hey pessoal, por hoje está bom! - Hide gritou de algum lugar no escuro. Na minha esquerda João soltou as ferramentas com um estrondo, e eu sei que foi ele pois é isso que ele sempre faz.
- VAMOS SUBIR GALERAAA!!! - Ele bradou. Os outros repetiram seu grito de guerra, num ato de rebeldia descarada, rindo alto ao terminar. Acham que são reis, todos eles. Aaah, eu daria muito para ver a cara deles quando descobrirem que não tem chances de sobreviver lá fora.
Quando subimos, fiquei momentaneamente cego. Não que a casa seja bem iluminada, na verdade, tem muito em comum com a caverna da qual acabei de sair. Porém, a pouca luz que vem das velas reflete nos azuleijos brancos da casa, que graças a Deus não são limpos a muito tempo.
Gordo nos esperava na cozinha. Ele devia ter onze anos, mas aparentemente é o único dos pirralhos que sabe cozinhar. Pena que isso não significa que seja bom. Mas é claro, ninguém reclama. Aposto que, como vivem na rua, toda gororoba que o Gordo tenha para oferecer é recebida como a melhor das refeições. Eu, por outro lado, nem sabia do que se tratava aquela meleca verde.
Estão todos atacando a gororoba, enfiando-na dentro de pães duros. Sempre fazendo barulho. Gabriel é quem está tentando conter a bagunça: isso tudo porque a protegida dele, Aisó, não conseguiu pegar ainda. Outra coisa que considero muito errada é essa relação dos dois. Ninguém me convence que Gabriel a vê como uma filha. Está óbvio que tem algo a mais, e eu lamento pela garota. Afinal, não se pode esperar que um delinquente desses se case, mesmo que com outra delinquente.
- Perdeu o cu na minha cara? - Perguntou-me Aisó. Detestável.
- Como se atreve? - Digo, levantando-me. Antes que eu possa fazer qualquer coisa, Hide me força a sentar outra vez.
- Com uma coisa chamada ousadia - ela retrucou, como se isso fosse algo explendoroso para se dizer. Gordo e João gritaram mais, porque, estúpidos como eram, realmente achavam qualquer comentário ousado de Aisó algo explendoroso.
- Aisó, quem te ensinou esse palavrão? - Gabriel perguntou.
- A vida - ela respondeu e ele a repreendeu com o olhar. Grande coisa. Ela não tem consciência.
- Com você - ela concertou, o que fez com que Gabriel a olhasse assustado e todos na mesa rissem - exceto eu.
- Não, isso está errado. Eu não digo essas coisas - Gabriel começou.
- Hoje mesmo você disse para a Paula não completar a frase, e ai o chamou de filho da puta.
Eu odeio esse apelido. Senti a raiva subir-me a espinha. Gabriel a olhava confuso, esquecido da ofensa.
- Tem certeza disso?
- É claro! O Carlinhos lembra, não lembra?
Carlinhos estava se lambuzando no molho junto com o Gordo, olhou para todos na mesa, limpou a boca com as costas da mão - a mesma que ele usou para garimpar e sequer lavou - e respondeu:
- Sim, você chamou a Paula de filho da puta, Gabe.
- Certo - Gabriel começou. Olhou para mim - Me desculpe por ter te chamado de filho da puta, Paula.
- Não. Me. Chame. Assim - respondi entredentes. Ele me ignorou. Filho da puta.
- Quando foi que eu te ensinei essa palavra?
Aquela altura quem estava se lambuzando com molho era Aisó.
- Que palavra? - ela perguntou. Agora era impossível fazê-la lembrar.
- Nada - Gabriel disse e se serviu de molho também.
- Certo, agora que resolvemos isso vamos falar sobre o plano - Hide disse e todos se calaram.
- Antes - começou Gabriel - tenho algo a dizer. Algo que não foi considerado antes.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Oct 17, 2018 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

Meninos PerdidosOnde histórias criam vida. Descubra agora