CAPÍTULO III - Dores Ocultas

339 50 69
                                    


  Os dias se passaram, correndo de uma forma assustadoramente normal, meu corpo nem mesmo parecia meu, estava intocado; límpido como porcelana, pálido como sempre fora, livre de hematomas.

  Por um momento, pude me sentir eu novamente. Ou um simples vislumbre do que um dia fui...

  O silencio cortava cada segundo, ele sequer ligara o radio, sequer viera a mim. Entupia-se de álcool, e castigava seus pulmões com um cigarro atrás do outro. Eu não compreendia, ele já não me queria mais? Meus dias estariam contados?

  A morte decidira finalmente me acolher em seus braços e me tirar daquele apartamento, ou ele apenas estava cansado, ele se entregaria? Devolver-me-ia a vida que tirou de mim?

  Eu possuía uma vida antes ou isso sempre foi a minha vida...

  O barulho da porta da sala sendo aberta com selvageria fez com que eu me sobressaltasse, eu estava sentada em uma cadeira perto da janela de meu quarto, olhando a paisagem morta lá de fora, me assustei ao ouvir vozes distintas e desconhecidas, todas masculinas, pensei em fechar a porta, mas tive medo de lembrar a ele que eu ainda estava ali, se é que ele estava lá.

  E depois de tantos dias, eu senti o medo corroer meus ossos como ácido. As vozes falavam ao mesmo tempo, pareciam com raiva, baques surdos de coisas sendo jogadas ao chão e possivelmente á mesa preencheram meus ouvidos, escolhi-me perto do colchão, temendo o pior.

  — Lugarzinho fudido esse.— comentou uma voz grossa, sendo acompanhada de algumas risadas.

  Virei minha cabeça, analisando a pequena janela do quarto, talvez se eu tivesse sorte poderia conseguir abri-la e talvez, saltar e sair com algumas fraturas, era uma escolha difícil; alguns ossos quebrados ou um bando de homens que poderiam me trazer muito mais do que a dor de um osso partido.

  Meu corpo tremia por inteiro, e o medo dera lugar ao pânico total, era angustiante, como um animal se contorcendo em meu interior, o sentimento de não saber o que se passava do outro lado da velha porta se intensificava, e por Deus, naquele maldito momento eu o queria ao meu lado, percebi que já havia aprendido a temê-lo e obedece-lo a um nível em que sabia que sem ele eu estaria perdida, e aqueles homens me encaminhariam de forma dolorosa aos braços da morte.

  Isso me assustava por inteiro, compreender que sentia em meu intimo a necessidade de tê-lo perto para me sentir segura novamente, o que diabos estava acontecendo comigo? Eu ainda era eu, ou apenas um fantasma da garota que já fui?

  — Se espera algum tratamento especial é melhor ir procura-lo longe daqui; estou arriscando mais do que minha liberdade, cara.— Meu coração saltou naquele momento, como se tivesse recebido uma descarga de vida, era a voz dele, severa e com uma leve nota de irritação presente.

  Tentei controlar minha respiração enquanto os minutos se passavam arrastados, a cada novo barulho eu me aguçava mais, ele, em nenhum momento deu a entender que estava acompanhado, era como se o apartamento fosse habitado somente por ele, e seus convidados falavam em um tom alterado enquanto discutiam assuntos banais, com frases carregadas de palavrões e conotações de baixaria.

  Fazia-me questionar, o que diabos ele estivera fazendo as horas que passara fora? E o que será que tais homens faziam ali? Escondiam-se, ficariam no apartamento por um tempo muito longo, e por fim, o que seria de mim presa naquele quarto fingindo que ao menos existia?

  Eu estava distraída, circundando com o dedo um ponto em minha coxa exposta, o vestido do dia era simples, de um azul fraco; meus cabelos estavam presos em um coque improvisado com um lápis qualquer. Por um momento pude apreciar o doce silencio que se abateu no outro cômodo, antes que num susto enorme eu me sobressaltasse; a porta se abriu lentamente, revelando a face de um homem de estatura media.

Devoção DoentiaOnde histórias criam vida. Descubra agora