Capítulo 3

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Dave

É comum que pessoas que acham que entendem da minha vida digam que eu preciso fazer um esforço para me relacionar. A palavra é exatamente essa: relacionamentos exigem esforço. Precisam ser cultivados. Têm de ser investidos. Em resumo, trabalho demais por algo que não vale a pena. As pessoas são estúpidas, sempre o foram e sempre o serão. Faz parte da natureza delas. Você decide dedicar um pouco do seu tempo para ouvir o que elas têm a dizer e o resultado é de uma estupidez sem tamanho.

Há alguns meses estive com o Victor, o único que realmente considero como um amigo. Nossa amizade não exige trabalho algum. Crescemos juntos. Nossos pais tocavam na mesma banda desde antes de nascermos, nossas mães se conheceram na escola. Não havia aquela palhaçada motivacional de amigo ser como terapia gratuita, porque as pedras que encontramos e galgamos foram presenciadas pelo outro. Ele conhecia a minha história e, eu, a dele. No momento, ele morava em Los Angeles. Na única vez em que o visitei, a conversa fluiu fácil. Futebol, carros, trabalho. Eu não me intrometia nos seus assuntos pessoais a menos que ele quisesse, então ele também não se intrometia nos meus. Era assim que deveria ser.

E não era uma garota mimada com incontinência verbal que se intrometeria na minha vida e me daria lição de moral.

Os dois neurônios da Mia finalmente se comunicaram e ela estava em silêncio, dedicada ao seu smartphone. Quem quer que fosse o infeliz para quem ela mandava tantas mensagens, ao menos não era comigo que ela tentava conversar. Mia era como a minha irmã. Falava demais, digitava demais, se importava de menos. Não via minha irmã Anna com frequência, mas, quando o fazia, ou ela estava se comportando como se tivesse doze anos, ou como se fosse uma vagabunda, ou estava falando com alguém pessoalmente, ou pendurada no smartphone. Meninas vazias sem conteúdo, ao contrário da mulher super feia do John Lennon. E não, Mia, mulher alguma jamais se meteria entre mim e meus amigos. Jamais conheci uma que valesse a pena e só tenho um amigo, que já tem a mulher dele.

Mia soltou o cinto de segurança e se virou para trás, se ajoelhando no banco, seu traseiro praticamente na minha cara. Era impossível não olhar. Uma beleza de bunda, aliás.

-O que você pensa que está fazendo?

-Preciso pegar o tablet na minha bolsa – Ela respondeu sem se virar.

-Você vai encostar o pé no painel do carro.

Mia se sentou, lançou um olhar gélido para mim e tirou os sapatos. Que ficasse brava o quanto quisesse, desde que suas pegadas não estivessem no meu painel.

Ela passou um bom tempo compenetrada com o tablet. Lembro que, quando minha mãe nos levava para almoçar, ela nos dava jogos eletrônicos. Não funcionavam durante muito tempo. Hoje em dia eu tinha meu saco de areia, na minha infância meu saco de areia era meu irmão Josh. A babá terminava correndo atrás de nós e nos apartando pelo restaurante. Houve uma vez que o garçom pediu que saíssemos e minha mãe fez um escândalo, dizendo que o restaurante permitia crianças, então por que as crianças dela teriam que se retirar. O truque dos jogos eletrônicos daria certo com a Mia. Ela não me perturbou mais.

Olhei o relógio. Mais de cinco horas para Inverness. Com a parada em Liverpool, já estava tarde e teria de dirigir noite adentro para chegar ao nosso destino no mesmo dia. Como sempre, Mia atrapalhou meus planos com o seu almoço. Poderia tentar seguir viagem, mas atravessaríamos um pedaço deserto. Não queria ficar com sono no meio da estrada e no meio do nada. Vi uma placa e tomei uma decisão. Peguei o desvio para Penrith.

***

Mia

Se não era para ter papo, então não haveria papo. Minha saliva era preciosa e não a gastaria com ele. Não suportava esse tipo de pessoa que se recusava a ver algo de bom em tudo e, como consequência, transformava a vida em um inferno para ela e para todos em volta. Se estávamos presos no carro precioso do Dave por tantas horas, não custava nada ouvir uma música, bater um papo. Até onde eu me lembrava, a ideia estúpida de fazermos o trajeto dessa forma era conversarmos e desenvolvermos alguma espécie de química. Talvez ele não soubesse disso. Talvez nem mesmo soubesse que aquele ensaio era sua última chance. Dave era lindo e talentoso, mas havia outros tão bons quanto ele, mais jovens e que não te davam vontade de se estrangular até a morte com o próprio cinto. Minha mãe era um pouco assim. Ela achava que o mundo era um lugar sombrio e horroroso e que tínhamos que nos conformar, encarar tudo como uma provação e só rezar para sobreviver.

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