Ato Único
A Rodoviária do Além. À esquerda temos o Busão do Inferno, com seu motorista, o Diabo, aguardando os passageiros do lado de fora. O mesmo faz o Anjo, à direita, na frente do Busão do Céu. Os personagens sempre entram pela esquerda, conversando primeiramente com o Diabo e depois com o Anjo. Em seguida entram num dos dois ônibus.
Cena I
Entra o norte-americano, caminhando até o busão infernal.
DIABO – Ora, quem vem sem permissão? Norte-americano, meu irmão!
AMERICANO – Cale-se, motorista sem brilho! Da família Baker sou filho! Como posso ser então, de sua impertinência irmão?
DIABO – Arrogante como sempre, por isso deixo que aqui entre.
AMERICANO – E para onde vai esse transporte sem todo ou qualquer porte?
DIABO – Ele leva até o Terceiro Mundo das profundezas, onde não há prazeres nem riquezas.
AMERICANO – Terceiro Mundo? Não irei para tal lugar imundo! Sou cidadão norte-americano, por sinal o mais bondoso do ano.
DIABO – OK, pare com o alvoroço! O que fez em carne e osso?
AMERICANO – Doei dinheiro ao hospital de minha cidade, num ato de grande beleza e caridade!
DIABO – Mas ao mendigo que bateu em sua porta, lhe negou um mero pedaço de torta. Se minha memória continua sã, a iguaria até era de maçã.
AMERICANO – Meu amigo, pense comigo e veja: não era de maçã, mas de cereja. Não resisto a esse doce sem igual, ele me dá prazer celestial.
DIABO – Americano é sempre assim: come tudo até o fim. Aposto que morreu de infarto com pouca idade: a maldita obesidade.
AMERICANO – Motorista sabichão, encerre já esta discussão! Disse que este transporte leva às profundezas, o inferno de tristezas?
DIABO – Americano ignorante, vais para o inferno errante!
AMERICANO – Já entendi qual é seu plano, seu fedido, iraquiano! Não estou na sua lista, filho duma castrista!
DIABO – Não adianta espernear! Neste ônibus deve entrar.
AMERICANO – Chifrudo sem conduta, sua mãe é prostituta! Filho de afegão, sujeito cagão! Covarde comunista, seu pai é terrorista! Pra se tornar um bandidão, só lhe falta turbante e o Alcorão!
DIABO – Vamos entrando que o tempo vai passando...
AMERICANO – Vou até o outro transporte, quem sabe tenho mais sorte! (Caminha até o Busão do Céu).
ANJO – Quem vem por aí vindo, para dessa maneira estar do ônibus do inferno saindo?
AMERICANO – Você é o motorista celeste, o oposto daquela peste?
ANJO – Posso ser, mas quem quer saber?
AMERICANO – Douglas Baker a seu dispor, para todo e qualquer louvor!
ANJO – Desculpe-me por sua inevitável sorte, mas poucos americanos entram neste transporte.
AMERICANO – Que injustiça, logo eu que sempre fui à missa!
ANJO – Americano egoísta, de limitado conhecimento e vista. Sempre descobrindo novas técnicas e curas, mas também matando e sustentando ditaduras. Não que todos sejam assim, mas vários de vocês encontram este fim. Tentando o mundo para seus interesses converter, em tudo tem que se intrometer. Suja e degrada o ambiente, esquecendo dos ideais de antigamente. Covarde e mentiroso, mesquinho e presunçoso! Arderás no fogo eterno, do Paraíso não vestirás o terno!
AMERICANO, voltando para o Busão do Inferno – Oh, destino cruel! Na eternidade terei o pior papel!
DIABO – Entre, vamos, de castigo serão anos! (O americano entra no ônibus).
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O Auto do Busão do Inferno (Peça de Teatro)
PuisiAdaptação do famoso auto (peça de teatro religiosa) do português Gil Vicente, o "Auto da Barca do Inferno", para os dias atuais - de acordo com as opiniões do autor. Quando qualquer pessoa morre, é transportada à Rodoviária do Além, onde os ônibus d...