CAPÍTULO VIII

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Agora nos é indispensável abandonar por alguns instantes Isaura em sua penível situação diante de seu dissoluto e bárbaro senhor para informarmos o leitor sobre o que ocorrera no seio daquela pequena família, e em que pé ficaram os negócios da casa, depois que a notícia da morte do comendador, estalando como uma bomba no meio das intrigas domésticas, veio dar-lhes dolorosa diversão no momento em que elas, refervendo no mais alto grau de ebulição, reclamavam forçosamente um desenlace qualquer.

Aquela morte não podia senão prolongar tão melindrosa e deplorável situação, pondo nas mãos de Leôncio toda a fortuna patema, e desatando as últimas peias que ainda o tolhiam na expansão de seus abomináveis instintos.

Leôncio e Malvina estiveram de nojo encerrados em casa por alguns dias, durante os quais parece que deram tréguas aos arrufos e despeitos recíprocos. Henrique, que queria absolutamente partir no dia seguinte, cedendo enfim aos rogos e instâncias de Malvina, consentiu em ficar-lhe fazendo companhia durante os dias de nojo.

- Conforme for o procedimento de meu marido, disse-lhe ela, - iremos juntos. Se por estes dias não der liberdade e um destino qualquer a Isaura, não ficarei mais nem um momento em sua casa.

Leôncio encerrado em seu quarto a ninguém falou, nem apareceu durante alguns dias, e parecia mergulhado no mais inconsolável e profundo pesar. Entretanto, não era assim. É verdade que Leôncio não deixou de sofrer certo choque, certa surpresa, que não golpe doloroso, com a noticia do falecimento de seu pai; mas no fundo d'alma, - força é dizê-lo, - passado o primeiro momento de abalo e consternação chegou até a estimar aquele acontecimento, que tanto a propósito vinha livrá-lo dos apuros em que se achava enleado em face de Malvina e de Miguel. Portanto, durante a sua reclusão, em vez de entregar-se à dor que lhe deveria causar tão sensível golpe, Leôncio, que por maneira nenhuma podia resignar-se a desfazer-se de Isaura, só meditava os meios de safar-se das dificuldades, em que se achava envolvido, e urdia planos para assegurar-se da posse da gentil cativa. As dificuldades eram grandes, e constituíam um nó, que poderia ser cortado, mas nunca desatado. Leôncio havia reconhecido a promessa que seu pai fizera a Miguel, de alforriar Isaura mediante a soma enorme de dez contos de réis. Miguel tinha pronta essa quantia, e lha tinha vindo meter nas mãos, reclamando a liberdade de sua filha. Leôncio reconhecia também, e nem podia contestar, que sempre fora voto de sua falecida mãe deixar livre Isaura por sua morte. Por outro lado Malvina, sabedora de sua paixão e de seus sinistros intentos sobre a cativa, justamente irritada, exigia com império a imediata alforria da mesma. Não restava ao mancebo meio algum de se tirar decentemente de tantas dificuldades senão libertando Isaura. Mas Leôncio não podia se conformar com semelhante idéia. O violento e cego amor, que Isaura lhe havia inspirado, o incitava a saltar por cima de todos os obstáculos, a arrostar todas as leis do decoro e da honestidade, a esmagar sem piedade o coração de sua meiga e carinhosa esposa, para obter a satisfação de seus frenéticos desejos. Resolveu pois cortar o nó, usando de sua prepotência, e protelando indefinidamente o cumprimento de seu dever, assentou de afrontar com cínica indiferença e brutal sobranceria as justas exigências e exprobrações de Malvina.

Quando esta, depois de deixar passar alguns dias em respeito à dor de que julgava seu marido acabrunhado, lhe tocou naquele melindroso negócio:

- Temos tempo, Malvina, - respondeu-lhe o marido com toda a calma. - É-me preciso em primeiro lugar dar balanço e fazer o inventário da casa de meu pai. Tenho de ir à corte arrecadar os seus papéis e tomar conhecimento do estado de seus negócios. Na volta e com mais vagar trataremos de Isaura.

Ao ouvir esta resposta o rosto de Malvina cobriu-se de palidez mortal; ela sentiu esfriar-lhe o coração apertado entre as mãos geladas do mais pungente dissabor, como se ali se esmoronasse de repente todo o sonhado castelo de suas aventuras conjugais. Ela esperava que o marido fulminado por tão doloroso golpe naqueles dias de amarga meditação e abatimento, retraindo-se no santuário da consciência, reconhecesse seus erros e desvanos, implorasse o perdão deles, e se propusesse a entrar nas sendas do dever e da honestidade. As frias desculpas e fúteis evasivas do marido vieram submergi-la de chofre no mais amargo e profundo desalento.

A Escrava Isaura (1875)Onde histórias criam vida. Descubra agora