CAPÍTULO XI

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Álvaro era um desses privilegiados, sobre quem a natureza e a fortuna parece terem querido despejar à porfia todo o cofre de seus favores. Filho único de uma distinta e opulenta família, na idade de vinte e cinco anos, era órfão de pai e mãe, e senhor de uma fortuna de cerca de dois mil contos.

Era de estatura regular, esbelto, bem feito e belo, mais pela nobre e simpática expressão da fisionomia do que pelos traços físicos, que entretanto não eram irregulares. Posto que não tivesse o espírito muito cultivado, era dotado de entendimento lúcido e robusto, próprio a elevar-se à esfera das mais transcendentes concepções. Tendo concluído os preparatórios, como era filósofo, que pesava gravemente as coisas, ponderando que a fortuna de que pelo acaso do nascimento era senhor, por outro acaso lhe podia ser tirada, quis para ter uma profissão qualquer, dedicar-se ao estudo do Direito. No primeiro ano, enquanto pairava pelas altas regiões da filosofia do direito, ainda achou algum prazer nos estudos acadêmicos; mas quando teve de embrenhar-se no intrincado labirinto dessa árida e enfadonha casuística do direito positivo, seu espírito eminentemente sintético recuou enfastiado, e não teve ânimo de prosseguir na senda encetada. Alma original, cheia de grandes e generosas aspirações, aprazia-se mais na indagação das altas questões políticas e sociais, em sonhar brilhantes utopias, do que em estudar e interpretar leis e instituições, que pela maior parte, em sua opinião, só tinham por base erros e preconceitos os mais absurdos.

Tinha ódio a todos os privilégios e distinções sociais, e é escusado dizer que era liberal, republicano e quase socialista.

Com tais idéias Álvaro não podia deixar de ser abolicionista exaltado, e não o era só em palavras. Consistindo em escravos uma não pequena porção da herança de seus pais, tratou logo de emancipá-los todos. Como porém Álvaro tinha um espírito nimiamente filantrópico, conhecendo quanto é perigoso passar bruscamente do estado de absoluta submissão para o gozo da plena liberdade, organizou para os seus libertos em uma de suas fazendas uma espécie de colônia, cuja direção confiou a um probo e zeloso administrador. Desta medida podiam resultar grandes vantagens para os libertos, para a sociedade, e para o próprio Álvaro. A fazenda lhes era dada para cultivar, a título de arrendamento, e eles sujeitando-se a uma espécie de disciplina comum, não só preservavam-se de entregar-se à ociosidade, ao vício e ao crime, tinham segura a subsistência e podiam adquirir algum pecúlio, como também poderiam indenizar a Álvaro do sacrifício, que fizera com a sua emancipação. Original e excêntrico como um rico lorde inglês, professava em seus costumes a pureza e severidade de um quaker. Todavia, como homem de imaginação viva e coração impressionável, não deixava de amar os prazeres, o luxo, a elegância, e sobretudo as mulheres, mas com certo platonismo delicado, certa pureza ideal, próprios das almas elevadas e dos corações bem formados. Entretanto, Álvaro ainda não havia encontrado até ali a mulher que lhe devia tocar o coração, a encarnação do tipo ideal, que lhe sorria nos sonhos vagos de sua poética imaginação. Com tão excelentes e brilhantes predicados, Álvaro por certo devia ser objeto de grande preocupação no mundo elegante, e talvez o almejo secreto, que fazia palpitar o coração de mais de uma ilustre e formosa donzela. Ele, porém, igualmente cortês e amável para com todas, por nenhuma delas ainda havia dado o mínimo sinal de predileção.

Pode-se fazer idéia do desencanto, do assombro, da terrível decepção que reinou nos círculos das belas pernambucanas ao verem o vivo interesse e solicitude de que Álvaro rodeava uma obscura e pobre moça; a deferência com que a tratava, e os entusiásticos elogios que sem rebuço lhe prodigalizava. Juno e Palas não ficaram tão despeitadas, quando o formoso Páris conferiu a Vênus o prêmio da formosura. Já antes daquele sarau, Álvaro em alguns círculos de senhoras havia falado de Elvira em termos tão lisonjeiros e mesmo com certa eloquência apaixonada, que a todas surpreendeu e inquietou. As moças ardiam por ver aquele protótipo de beleza, e já de antemão choviam sobre a desconhecida e o seu campeão mil chascos e malignos apodos. Quando, porém, a viram, apesar dos contrafeitos e desdenhosos sornsos que apenas lhes roçavam a flor dos lábios, sentiram uma desagradável impressão pungir-lhes no íntimo do coração. Peço perdão às belas, de minha rude franqueza; a vaidade é, com bem raras exceções, companheira inseparável da beleza e onde se acha a vaidade, a inveja, que sempre a acompanha mais ou menos de perto, não se faz esperar por muito tempo. A beleza da desconhecida era incontestável; sua modéstia e timidez em nada prejudicavam a singela e nativa elegância de que era dotada; o traje simples e mesmo pobre em relação ao luxo suntuoso, que a rodeava assentava-lhe maravilhosamente, e realçava-lhe ainda mais os encantos naturais. O efeito deslumbrante, que Elvira produziu logo ao primeiro aspecto, e o empenho com que Álvaro procurava fazer sobressaltar os sedutores atrativos de Elvira, como de propósito para eclipsar as outras belezas do salão, eram de sobejo para irritar-lhes a vaidade e o amor-próprio. Uma e outra deviam ser naquela noite o alvo de mil olhares desdenhosos, de mil sorrisos zombeteiros, e acerados epigramas.

A Escrava Isaura (1875)Onde histórias criam vida. Descubra agora