O primeiro cuidado de Martinho logo ao sair do baile, em que viu malograda a sua tentativa de apreender Isaura, foi escrever ao senhor dela uma longa e minuciosa carta, comunicando-lhe que tinha tido a fortuna de descobrir a escrava que tanto procurava.
Contava por miúdo as diligências que fizera para esse fim, até descobri-la em um baile público e encarecia o seu próprio mérito e perspicácia para esbirro, dizendo que a não ser ele, ninguém seria capaz de farejar uma escrava na pessoa de uma moça tão bonita e tão prendada. Alterando os fatos e as circunstâncias do modo o mais atroz e calunioso, dizia-lhe em frases de taverneiro, que Miguel se estabelecera no Recife com Isaura a fim de especular com a formosura da filha, a qual, a poder de armar laços à rapaziada vadia e opulenta, tinha por fim conseguido apanhar um patinho bem gordo e fácil de depenar. Era este um pernambucano por nome Álvaro, moço duas vezes milionário, e mil vezes desmiolado, que tinha por ela uma paixão louca. Este moço, a quem ela trazia iludido e engodado ao ponto de ele querer desposá-la, caiu na tolice de levá-la a um baile, onde ele Martinho teve a fortuna de descobri-la, e a teria apreendido, e estaria ela já de marcha para o poder de seu senhor, se não fosse a oposição do tal senhor Álvaro, que apesar de ficar sabendo de que ralé era a sua heroína, teve a pouca-vergonha de protegê-la escandalosamente. Prevalecendo-se das valiosas relações, e da influência de que gozava no país em razão de sua riqueza, conseguiu impedir a sua apreensão, e tornando-se fiador dela a conservava em seu poder contra toda a razão e justiça, protestando não entregá-la senão ao seu próprio senhor. Julga que a intenção de Álvaro é tentar meios de libertá-la, a fim de fazê-la sua mulher ou sua amásia. Julgava de seu dever comunicar-lhe tudo isso para seu governo.
Era este em suma o conteúdo da carta de Martinho, a qual seguiu para o Rio de Janeiro no mesmo paquete que levava a carta de Álvaro, fazendo proposições para a liberdade de Isaura. Leôncio, contente com a descoberta, mas cheio de ciúme e inquietação em vista das informações de Martinho, apressou-se em responder a ambos, e o mesmo paquete que trouxe a resposta insolente e insultuosa que dirigiu a Álvaro, foi portador da que se destinava a Martinho, na qual o autorizava a apreender a escrava em qualquer parte que a encontrasse, e para maior segurança remetia-lhe também procuração especial para esse fim, e mais algumas cartas de recomendação de pessoas importantes para o chefe de policia, para que o auxiliasse naquela diligência.
Martinho mais que depressa dirigiu-se à casa da polícia, e apresentando ao chefe todos esses papéis, requereu-lhe que mandasse entregar-lhe a escrava. O chefe em vista dos documentos de que Martinho se achava munido, entendeu que não lhe era possível denegar-lhe o que pedia, e expediu ordem por escrito, para que lhe fosse entregue a escrava em questão. e deu-lhe um oficial de justiça e dois guardas para efetuarem a diligência.
Foi, portanto, o Martinho, que, munido de todos os poderes, competentemente autorizado pela polícia, apresentou-se com sua escolta à porta da casa de Isaura, para arrebatar a Alvaro a cobiçada presa.
- Ainda este infame! - murmurou Álvaro entre os dentes ao ver entrar o Martinho. - Era um rugido de cólera impotente, que o angustiado mancebo arrancara do íntimo da alma.
- Que deseja de mim o senhor? - perguntou Álvaro em tom seco e altivo.
- V. S.ª que bem me conhece, - respondeu Martinho, - já pode presumir pouco mais ou menos o motivo que aqui me traz.
- Nem por sombras posso adivinhá-lo, antes me causa estranheza esse aparato policial, de que vem acompanhado.
- Sua estranheza cessará, sabendo que venho reclamar uma escrava fugida, por nome Isaura, que há muito tempo foi por mim apreendida no meio de um baile, no qual se achava V. S.ª e devendo eu enviá-la a seu senhor no Rio de Janeiro, V. S.ª a isso se opôs sem motivo algum justificável, conservando-a até hoje em seu poder contra todo o direito.
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