Querido caderno azul,
Por um tempo, estive tentando entender porque que as pessoas não entendiam o que era o amor.Começou quando estávamos no supermercado numa manhã de sábado. Eu tinha seis anos e Simon havia pedido para eu eu pegar presunto no freezer. Me afastei dele e fui fazer o que pediu.
Os presuntos mais baratos estavam lá atrás, então me ergui na ponta do pé e puxei o último da fileira. Consequentemente, os que estavam na frente caíram todos sobre mim e acabei dando de cara com o chão. A minha imbecilidade chamou atenção de quem estava por perto.
— Oh, meu Deus... Coitado... — lamentou uma senhora.
— Estou bem. — garanti, me levantando.
— Onde está sua mãe? — uma mulher com um bebê de colo perguntara.
— Ele está na seção de produtos de limpeza. — respondi, catando os pacotes de presuntos e os "arrumando" dentro do freezer.
— Está se referindo à seu pai, não? — a mulher perguntou.
— Também. — dei de ombros e me afastei dela. No meio do caminho de volta, Simon apareceu na minha frente e me tomou nos braços. — Oi, pai...
— Ei, o senhor é o pai deste garoto? — a mesma mulher se aproximou de mim. Nesse momento, a filha dela começou a chorar.
— Sim, por quê? — Simon respondeu, com a sua voz de pai responsável.
— Não deveria mandá-lo pegar presunto sozinho. Ele derrubou uma fileira inteira deles. — ela começou a balançar o bebê.
— Ah, Simon, amor... Qual eu escolho: sorvete de flocos ou napolitano? — Michael se aproximou de nós, com dois potes de sorvete. — Oh, estou atrapalhando algo?
— Deixa que eu escolho, deve ter outros sabores... — Simon respondeu, me colocando no chão e pegando os potes da mão de Michael. Em seguida, se afastou de nós.
Foi a vez de Michael me carregar, mas ele me colocou sentado em seus ombros. Era magnífico a vista dali de cima. Eu me sentia um gigante indestrutível.
— O que falava, moça? — Michael a fitou.
— Você é pai dele? — a mulher me olhava de forma estranha.
— Sou, sim. — Michael respondera. A mulher ficou confusa.
— E onde está a mãe? — continuava sacudindo o bebê.
— Aqui também.
— Bem... — engoliu a seco. — Seu filho derrubou os presuntos agora há pouco. Acho que deveria ser mais responsável. Você e seu...
— ... Marido. Nós somos casados.
— Não sabia que haviam permitido isso.
— Não precisamos de permissão para nos casarmos, senhora.
— Está certo que gays não sabem cuidar de crianças. Vê se tomam cuidado, a criança não tem culpa dos seus pecados.
Aquilo enfureceu Michael.
— Por que não tenta cuidar da sua vida? Se ainda não percebeu, a sua filha não quer dormir, ela quer comer. Então não venha tenta me ensinar como devo educar e cuidar do meu filho enquanto a sua filha morre de fome. Com linceça, senhora. Tenha um bom dia. — nisso, deu as costas e foi até Simon.
— Comentário homofóbico? — perguntou Simon, sem tirar os olhos dos potes de sorvetes.
— Como sempre. — o senti encolher os ombros. — Chris, pode, por favor, ser mais cuidadoso?
— Sim, pai. — respondi. — Por que não levamos ambos os sorvetes?
Simon sorriu para mim e os colocou no carrinho. Ficaram conversando sobre os preços das coisas, no caminho de volta para casa, enquanto eu chupava um pirulito azul, deitado no banco de passageiro do Volvo de Michael.
Eu fiquei pensando... Se eles eram os meus pais e mães, significa que eu era o menino mais sortudo do mundo. Porque ter Simon e Michael ao meu lado era tudo de bom.
Ah, sabe o que eu acabei de lembrar, Caderno Azul? Do dia em que tentei fugir de casa. Foi naquele dia que eu tive certeza que eles eram os melhores pais/mães do mundo.
Eu me vi sentado e encolhido em uma cadeira amarela da escola, entre Simon e Michael. A professora Marta estava olhando para ambos, com as mãos pousadas em um papel em cima da mesa.
Recuperação de matemática. Eu teria que fazer recuperação de matemática aos nove anos.
Eu tinha uma desculpa: dividir era muito difícil. Pelo menos era, para mim.
Michael sempre me fazia estudar todos os dias, mas nem isso me salvava. Eu estava totalmente encrencado e senti que eles não me amariam como antes.
A professora explicou a minha situação para os meus pais. Quando voltamos para casa, Michael sentou comigo para estudarmos matemática. Eu não aguentava mais ouví-lo dizer que era para eu ser mais responsável e estudar mais.
Eu amo Michael, mas ele quer que eu seja um filho perfeito e eu não sou. Eu tento, mas não consigo. É como se estivesse me obrigando à fazer algo impossível para mim.
Por isso, quando ele estava me explicando como dividir 40:8 e eu errei, respondendo 32, e ele perdeu a paciência pela trigésima vez e gritou comigo sobre eu ter que crescer de uma vez ou nunca; eu me levantei, e por um momento de coragem e um grande impulso de raiva, gritei com ele pela a primeira vez. E não acontece nada de bom quando se grita com Michael.
— Eu odeio matemática! E odeio quando fala comigo como se eu já fosse um adulto, Michael! Eu odeio estar aqui nessa droga de casa com você! Eu prefiro Simon porque ele não grita comigo por conta de uma droga de quarenta balas que tem que dividir igualmente para droga de oito garotos! Ele não grita comigo, Michael! Por isso que te odeio também! — eu estava vermelho e chorando.
Joguei o caderno em cima dele e corri para o meu quarto. Me tranquei em seguida e tive um surto de raiva, jogando tudo no chão e bagunçando.
— Você vai ficar sem assistir desenhos pelo resto do mês, Christian! — gritou Michael, do outro lado da porta. — Abra agora essa porta, senão irá se arrepender disso!
— O que irá fazer comigo, Michael? Me bater até eu sangrar? — eu esmurrava o travesseiro.
— Eu não vou te bater, Christian! Vou te proibir de jogar videogame! — ele batia na porta e eu senti que ela poderia despencar a qualquer momento.
— Me proíba do que quiser, Michael! Mas não vai poder me obrigar à te chamar, outra vez, de "pai"!
E ele parou de bater, não falou nada e eu não ouvi barulho algum. Ele desistiu, cedeu.
Acontece que aquilo foi a coisa mais forte que eu havia dito para ele. E meu coração está partido agora ao saber que falei isso. Michael estava sendo Michael. Eu devia entender. Mas eu era só um menino mimado, não sabia direito como uma simples frase afetava uma pessoa. Eu não sabia de nada.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O Caderno Azul
RomanceQuerido caderno azul, eu te comprei para presentear os meus pais no dia das mães. Eu sei que existe pessoas que irão dizer que dois pais não são mães, mas para mim são. Minha professora diz que mãe é quem cuida, então Simon e Michael são, definitiv...