Como já falei antes, todas essas tecnologias que temos agora eram um sonho durante a minha adolescência. Apesar disso, eu tinha o dinheiro e recursos para ir atrás das respostas. Meus pais ficaram felizes quando mostrei interesse em fazer um intercâmbio nos Estados Unidos e depois de conversarmos com uma agência e alguns contatos do meu pai eu fui fazer meu último ano em um High School.
Meu interesse pela língua, cultura ou seja lá o motivo pelo qual as pessoas costumam fazer esse tipo de coisa, era mínimo. O que eu queria realmente era encontrar respostas para o que estava acontecendo comigo. No Brasil tínhamos algumas lendas sobre pessoas se tornando animais como o Boto Cor-de-Rosa ou a Mula Sem Cabeça. Eu também conhecia lobisomens e vampiros, quadrinhos da Marvel e da DC, Star Wars e toda essa parafernalha que falava sobre poderes, ETs e mutantes. Ainda assim, nada disso explicava o porquê de eu ser como era.
Nos Estados Unidos tive a oportunidade de estudar livremente sobre genética, tinha liberdade no meu dormitório individual pra tentar praticar e me transformar em animais e foi quando descobri que me transformava apenas em bichos que já tinha comido. Peixes, frango, porco, vaca (não tente fazer isso em um dormitório estudantil), frutos do mar e só. Nada de cachorros. Nada de tubarões. Nada de elefantes. Uma vez consegui me transformar em uma minhoca e até mesmo uma barata, mas preferi não pensar muito sobre o assunto.
Um dia decidi então ir até Chinatown. Eu sabia que eles comiam coisas estranhas como insetos e peixe cru, então pensei que talvez lá pudesse aumentar a quantidade de animais que poderia me transformar. Comprei uma porção de tudo que achei estranho, aranhas, escorpiões, lagartos, cobra, cavalo marinho. Tudo lá parecia ser frito, empanado e eles me davam um tipo de molho gosmento pra poder comer. Levei tudo para o dormitório e comi um por um dos animais. Os petiscos já estavam frios quando cheguei, mas a sensação de poder virar uma aranha depois de ter engolido o bicho sem pensar muito valeu a pena.
Foi então que eu notei que a única coisa que eu poderia fazer quanto a habilidade que eu tinha era me aperfeiçoar. Naquela noite liguei para meus pais, contei o quanto estava adorando participar do jornal do colégio, que fotografar era algo que eu adorava fazer. Em um mês eles tinham aumentado em um zero a mesada que me mandavam. Em dois eu estava formado no High School. Em três pegava um voo para Hong Kong, onde um guia local contratado pelo meu pai me ajudou a encontrar os lugares onde se serviam as mais estranhas iguarias. Ele constantemente me perguntava se eu realmente queria comer aquelas coisas. Que tipo de ocidental apreciaria um cérebro de macaco? Sashimi de baiacu? Bico de pato frito?
A verdade é que aquilo tinha se tornado um frenesi, eu queria cada dia animais mais diferentes, cada dia provar sabores mais estranhos. Eu continuei viajando, passava em cada lugar apenas o necessário para comer tudo que tinham para me oferecer. Comi morcegos no Vietnã, ursos na Rússia, sapos no Peru, javali na Namíbia. Muitas vezes tinha que ir em restaurantes caríssimos e clandestinos provar as iguarias ilegais. Comi sopa de tubarão e cachorro assado na China, paguei milhares de dólares por carne de elefante e gorila na África. Provei hamburguer de cavalo, ensopado de tartaruga, piranhas grelhadas e porquinho-da-india assado.
Foi comendo estômago de ovelha na Escócia que conheci Iona. Eu já tinha pegado gosto por pratos estranhos e apesar de já ter provado de carne de ovelha antes pedi aquele prato mais uma vez. Uma mulher com longos cabelos loiros se aproximou, aparentava ter na faixa de quarenta anos, ela torceu o nariz, como se sentisse um cheiro ruim. Eu estava acostumado a esse tipo de reação.
- Púca. - Cuspiu, olhando para mim com desprezo.
- Na verdade é intestino, quer provar? - Ofereci, falando em inglês. Esperava que ela entendesse a piada, se não de nada valeria meu bom humor.
- Você é Púca. - Ela me olhou de cima a baixo e cruzou seus braços. - Não pense que sou enganada por você, fada. - Eu tenho que admitir que achei que ela era doida, por um minuto. Fada? O que ela queria dizer com isso? Estava prestes a retrucar quando ela voltou a falar. - Vire um cavalo como da última vez. - Retesei em minha cadeira. De repente o estômago da ovelha tinha realmente gosto de estômago e eu queria vomitar ele fora. Entenda, não é como se uma pessoa doida não pudesse chegar e falar que você era um vampiro a qualquer momento, mas quando você realmente pode se transformar em um cavalo isso se torna pessoal.
- Desculpe, minha senhora, acho que se enganou. Não sou Púca nenhum. - Limpei minha boca e pedi a conta para o garçom com um aceno. Precisava ir embora dali agora.
- Sinto cheiro de transmorfo em você. Se não é Púca, é lycan. - Agora eu não tinha dúvidas de que alguma coisa não estava bem, mas o problema era maior do que simplesmente chamar um táxi e voltar para o hotel. Eu não sabia o que aquela mulher era na época, ou o que diabos era uma Púca, mas Iona foi a primeira pessoa que demonstrou saber qualquer coisa sobre o que eu era e eu não podia perder essa oportunidade.
- O que você sabe sobre transmorfos? - Eu tinha pesquisado tudo que podia, mas sempre acabava parando nas mesmas histórias sobre vampiros e lobisomens.
- Eu sei que há muitos anos eles não apareciam por aqui. O que é você? - Seu sotaque tornava quase impossível a compreensão das palavras, muitas vezes ela errava o que tentava falar.
- Eu não sei. - Confessei, colocando algumas libras dentro da carteira do restaurante. Iona me encarou com seus olhos azuis pálidos, como se me testando para provar que minhas palavras eram verdade. Engoli em seco, tentando transmitir pra ela tudo que tinha passado durante quase dois anos viajando em busca de respostas. Eu estava desesperado por alguém que soubesse algo sobre o que eu era. Eu estava desesperado por uma luz.
- Então acho que está na hora de descobrir.
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Animalia (Em Revisão)
Teen FictionPelo que todos sabiam Henrique tinha tudo que alguém poderia pedir, mas ninguém sequer imaginava que tudo que ele precisava eram de respostas. Esse conto nos mostra como o criador do Lar Arsalein e fundador do Centro de Estudos e Pesquisas Ana Arsal...