Eu Não Sou Deus

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O caminho até chegarmos no Laboratório Arsalein de Testes era longo e complicado. Apesar de ser o dono de tudo, fazíamos muitos testes de segurança antes de o acesso às áreas privadas ser permitido.
Os corredores a minha volta eram uma mistura de paredes de vidro, onde podíamos ver os experimentos dentro dos laboratórios, e metal blindado. Tudo ali era blindado.
Apesar da estrutura militarizada, uniformes rigorosos e experimentos ilegais, as pessoas que cruzavam por mim nos corredores sorriam, acenavam com a cabeça e pareciam relaxadas.
Era uma situação desconfortável, mas todos entendiam que estávamos em guerra. O LAT, apesar de ir contra tudo que planejei quando criei o Lar, era necessário.
O Hospital avançava em suas pesquisas, Phoenix Labs estava começando a nos incomodar, corrompidos andavam por aí salvando a pátria e ainda tinha o H-Bro, que parecia saber demais e não se importar nem um pouco em expor isso para o mundo.
Nossas identidades estavam em perigo, o CEPAA estava perdendo a credibilidade e muitos dos doadores da Fundação Ana Arsalein estavam cortando nossos fundos por não quererem ter suas imagens associadas a nomans, como estavam nos chamando.
Como se não bastasse os corrompidos se expondo para o mundo, descobrimos que existiam duas raças de pessoas "diferentes" e obviamente que começariam a nos chamar de not humans.
Por isso eu preferia os animais.
Parei em frente ao vidro de um dos laboratórios. Lá dentro, uma garota jovem tinha os cabelos flutuando ao seu redor como tentáculos. Uma das mechas procurou por uma latinha sobre a mesa, outra se prendeu ao aro do lacre e puxou. A lata caiu no chão, refrigerante pingando no piso, mas um dos avaliadores aplaudiu e sorriu feliz para a garota. A moça parecia constrangida por ter falhado, mas logo se animou com o homem, que parecia insistir que ela havia ido muito bem por ter conseguido abrir a embalagem.
Até mesmo ali parecia que o Lar sempre seria isso: um lar.
Segui meu caminho até a área da administração. Suzana estava tão distraida que mal me viu entrar, provavelmente conversando com o espírito de Carolina. Abracei-a por trás grudando meus lábios em seu pescoço, sua pele arrepiando diante de mim.
- Você me assustou. - Brincou, virando-se para mim. Provavelmente a coisa mais difícil de ter voltado ao comando da empresa da família era me manter longe dela. Quando meu tempo era totalmente dedicado ao Lar, mesmo que trabalhando passávamos os dias juntos. Agora? Suzana ficava em Rondônia, cuidando do LAT e eu no Rio de Janeiro. Até mesmo Bernardo eu via com mais frequência, já que o rapaz não mudou nada nos últimos anos e continuava inseguro como um garotinho, sempre que possível fugindo do Lar em São Paulo para me ver.
- Fiquei com saudades. - Suzana sorriu calorosa antes de me beijar suavemente. Eu não me sentia tão paciente, apertando sua cintura com força contra meu corpo.
- Ei, aqui não. - Afastou-me e bufei.
- Fala sério, nem você aguenta mais. - Ela revirou os olhos, andando para sua mesa.
- Mais tarde, Henrique, agora temos problemas mais sérios. - Entregou pra mim uma pasta e eu sentei pra poder analisar aquilo com cuidado. - O que vamos fazer?

- O que você quer que eu diga? Rebeca já sabe? - Suzana desviou os olhos. - Você quer que eu conte, certo? - Deixei com que minha cabeça pendesse para trás, suspirando longamente.

- Como vamos realocar tantas pessoas? Ian, Victoria, Juan... Henrique, a FAA está perdendo capital. Bernardo vive negando, mas eu sei que estão tirando leite de pedra no Lar. - Suzana geralmente procurava parecer forte. Eram raros os momentos em que ela se desesperava por algo, mas ali, com o fechamento iminente do CEPAA e todo nosso esforço em mantermos discrição por mais de 10 anos jogado fora, era de se desesperar mesmo. Se eu pudesse apenas chegar em um daqueles garotos que colocou todos os meus jovens em risco e mostrar tudo que as atitudes sem consciência deles nos causaram...

- Vamos fechar o CEPAA, realocar os pesquisadores aqui e os estudantes no Lar principal. - Suspirei, entrando no modo empresário responsável. - Aqueles tiverem família vamos ter que pedir que voltem pra casa ou que paguem pelos custos de viver conosco.

- Mas se eles voltarem vão estar sem proteção!

- E você acha que eu não sei? - Gritei, empurrando a cadeira pra trás. - Eu não sou Deus, Suzana, eu não posso salvar a todos! Não posso! - Respirei fundo, vendo que ela me encarava fixamente. - Eu queria, mas não temos mais dinheiro pra isso. Sabe quantas daquelas crianças estão sob minha tutela? Eu tirei elas de orfanatos! Das ruas! - Puxei meu cabelo pela raíz, agora curto como de qualquer homem de negócios. - O CEPAA é só o início, logo teremos que fechar Lares, quem sabe até aqui, o LAT? O futuro da Fundação está em risco e você sabe.

- Eu sei, mas não podemos ceder. Você não pode confundir quem são os culpados. - Ela veio até mim, segurando minha mão.

- Os culpados são aqueles moleques inconsequentes que fizeram das habilidades uma atração de circo! - Uma palavra me definiria: exaltado. Aquele assunto me tirava do sério.

- É isso que eu estou dizendo, nossos inimigos não são eles. - Suzana segurou meu rosto para que eu fitasse seus olhos. - Eles estavam perdidos, a culpa é nossa por não termos os encontrado antes disso tudo acontecer. Tanto faz se são corrompidos ou nomans, eles não sabiam que existia outra opção, pensavam que estavam sozinhos. Eu fiquei um século pensando que estava sozinha, sei como se sentiram. - Respirei fundo, sabendo que ela tinha razão. Eu tinha tomado para mim a responsabilidade de encontrar e resgatar todo e qualquer noman que existisse, se eles não tiveram assistência a culpa é do Lar. - Nossa luta aqui não é contra um bando de corrompidos, é contra o Hospital. É ele que temos que culpar.

- Eles estão mais fortes do que nunca, Suzana. Nós perdemos investidores e estamos falidos, não temos recursos pra ir atrás deles.

- Talvez precisemos de reforços. - Sugeriu, sorrindo de canto.

- O quê? - Ela não estava realmente cogitando isso, certo? - Você só pode estar de brincadeira com a minha cara. Eu não vou aceitar isso.

- Henrique, eu já aceitei. - Deu de ombros, prendendo minhas duas mãos.

- Você o quê? Como assim aceitou? Não pensou nem em me consultar?

- Estou consultando agora. Você tem uma reunião com eles em dois dias, na sua empresa. - Sentou na mesa, como se nada tivesse importancia.

- Você falou com a minha secretária? - Isso era o cúmulo.

- Sua secretária é a Melissa, Henrique, eu converso com ela sempre. - Revirou os olhos, como se fosse obrigação sua falar com todas as pessoas que um dia já viveram no Lar.

- Eles nos destruíram, Suzana. Eles nos colocaram sob os holofotes! Rebeca não vai concordar com isso. - Ela pegou sua bolsa e saiu andando pela porta, eu a acompanhei, trancando atrás de mim com a senha.

- Rebeca já aceitou. - Tentei protestar, mas ela foi mais rápida. - Antes que pergunte, Bianca acha uma ótima ideia e até Lucas encarou isso bem.

- Você contou pro Lucas antes de me consultar? Vocês sabem com quem estão querendo fazer um acordo? São um bando de crianças, ovelhas desgarradas! Eles não têm a mínima noção do que fazem se expondo desse jeito.

- Então seja o pastor deles, Henrique. Eles precisam de alguém que consiga fazer com que entendam a gravidade do que fazem e a responsabilidade que têm que ter.

- Isso é ridículo. - Não disse nada, apenas segurou minha mão com um suspiro. - Pra onde está me levando?

- Pra um lugar onde posso te convencer. - Sorriu de canto.

- Você quer me comprar com sexo? Quando foi que você se tornou isso, Suzana? - Ela deu de ombros, o sorriso ficando mais malicioso a cada segundo.

- O que eu posso dizer, nem eu aguento mais. - Suzana digitou a senha de seu quarto, empurrando-me para dentro. - Podemos discutir isso mais tarde.


Animalia (Em Revisão)Onde histórias criam vida. Descubra agora