Iona foi minha xamã por aproximadamente um ano, me ensinou um pouco sobre o druidismo durante as semanas que se seguiram, até o dia 31 do mês de Outubro. Ela fez com que eu me vestisse com flores, para disfarçar meu fedor de goblin e fomos fazer o rito tradicional para a cultura celta em meio a floresta. Muitas outras pessoas se reuniram conosco, especialmente mulheres, todas em seus trajes ritualísticos e carregando oferendas aos Sídhe, entoando cânticos e conversando entre si. Naquela noite eu vi a Super Lua de 2004, meus olhos congelaram naquela visão da grande bola prateada acima de nós, enquanto os rituais eram feitos a minha volta.
O Samhain era talvez a festa mais importante para a cultura céltica, o festival de passagem do ano, onde os Daoine Sídhe permitem que os humanos vejam todas as criaturas míticas que vivem em nosso mundo. Fadas, elfos e duendes podiam assombrar as pessoas, assim como os espíritos recebiam autorização para vagarem pela terra enquanto o sol não nascia no dia 1º de Novembro.
Por todo esse tempo Iona me mostrou como administrar os animais dentro de mim, me instruiu a marcar meu corpo com cada animal que eu consumi como forma de tributo por suas vidas. Ela me mostrou que somos parte da natureza, não vivemos para subjuga-la e sim que somos sua irmã. Vimos famílias de animais andando pela floresta, meditamos e eu pedi perdão e fiz sacrifícios de frutas e ervas em nome dos animais que tinha consumido.
Isso não durou muito tempo também.
Voltei no final daquele treinamento com Iona para o Brasil, minha mãe chocada com meu corpo tatuado com todos os tipos de animais imagináveis, meu pai ansioso para que eu finalmente assumisse uma posição na empresa da família. Isso aconteceu em 2004.
Meu pai faleceu um ano depois, vítima de um câncer que eles me esconderam durante o tempo que estive viajando. Depois do luto minha mãe decidiu que deveria se distanciar de todos por um tempo e foi passar uma temporada na Europa. Enquanto isso eu optei por abrir mão de meu cargo administrativo da empresa da família e manter-me apenas como sócio. O empreendimento que tinha em mente era muito maior do que importação de alimentos.
Eu tinha voltado a comer carne, como esperado. Adquiri muito conhecimento sobre alimentação e já sem o preconceito que temos com alimentos diferentes aqui no ocidente minha geladeira era rica em comidas exóticas. Ervas, temperos, insetos, órgãos internos. Só o mais nutritivo possível.
Iona estaria decepcionada.
O que ela me mostrou que realmente fez diferença para mim foi que eu não estava sozinho. Iona me apresentou a pessoas que já haviam conhecido lobisomens, vampiros, fadas e duendes. Uma mulher me contou sobre uma garota que controlava o vento, que morava na França. Era atrás dela que eu estava agora.
Um detetive particular me enviou tudo que eu precisava saber por email, seu nome era Anna, estudava gastronomia e tinha sido sorteada dentre os alunos da Universitad de Paris por uma famosa multinacional brasileira do ramo alimentício com tudo pago para fazer uma visita as suas instalações. Que coincidência!Eu esperei por Anna no aeroporto, ela ficou surpresa por um dos sócios majoritários da empresa a receber e também por eu ser tão novo. Falei francês com ela, almoçamos e pedi que descansasse para que pudesse lhe apresentar o Rio de Janeiro no final da tarde.
Naquela noite levei Anna para jantar em um restaurante com salas privativas, o dono havia sido muito bem pago para não permitir que garçons interrompessem nossa conversa, o que foi ótimo já que Anna soltou um grito agudo quando transformei meu braço em uma pata de urso para lhe provar o que dizia.
Ela fez com que os guardanapos voassem e vi como ficou aliviada por saber que não era a única. Juntos, decidimos que precisávamos encontrar as pessoas que fossem como nós, precisávamos mostrar a eles que não estavam sozinhos.
Anna sugeriu o nome do Lar Arsalein, eu entrei com o investimento e em 2006 a casa foi construída. Quartos, enfermarias, salões para treinamentos, salas de jogos. Tudo estava perfeito.
Obviamente, nesse ponto, Anna tinha voltado à França, para terminar seu curso antes de aceitar a vaga permanente como minha assessora pessoal. Mas ela não voltou.
Anna tinha 22 anos quando o Hospital a encontrou. A história da garota que controlava os ventos tinha se espalhado pela Europa, mesmo que com tom de deboche. Tudo isso chamou a atenção das pessoas erradas, levaram Anna sem deixar rastros. Nesse ponto já sabíamos que Hospital existia, que eles buscavam pessoas como nós, e isso era um dos maiores motivos por eu ter criado o Lar Arsalein.
O corpo da minha amiga foi encontrado na floresta onde passei meu primeiro Samhain, uma bola prateada desenhada em seu peito inerte.
Desde então conseguimos reunir em torno de 250 pessoas com habilidades sobrehumanas. Duas outras unidades do Lar Arsalein foram criadas, a segurança de nossas casas foi multiplicada. O Hospital nos caçava com lobos e armas, enquanto tudo que tínhamos eram jovens assustados que deixaram pra trás suas famílias em busca de respostas.
Entenda, eu não podia ficar parado. Eu não podia simplesmente fingir que nada disso estava acontecendo, que jovens não estavam desaparecendo dos meus cuidados e sendo mortos pelo Louco.
Desculpe-me por ter desaparecido em um momento crítico como esse. Tenho certeza que é capaz de cuidar de tudo por algumas semanas, não é como se nunca tivesse feito isso antes.
O garoto de Oséias está chegando em breve, talvez eu não esteja aqui para o receber, mas lembre de não deixar que descubra sobre sua mãe, não podemos permitir que ele se distraia nesse tempo de crise com histórias do passado. Treine-o. Prepare-o. Ele precisa nos ajudar a trazer mais e mais pessoas para um lugar seguro.
Não fique zangada comigo, Suzana, voltarei em breve.
Sempre seu, Henrique.
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Animalia (Em Revisão)
Teen FictionPelo que todos sabiam Henrique tinha tudo que alguém poderia pedir, mas ninguém sequer imaginava que tudo que ele precisava eram de respostas. Esse conto nos mostra como o criador do Lar Arsalein e fundador do Centro de Estudos e Pesquisas Ana Arsal...