Parte II

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Acabei adormecendo e quando acordei já passava das dezoito horas, caminhei cambaleando até o interruptor, meus olhos latejaram assim que a luz iluminou o cômodo, abri a porta do quarto e dei de cara com o corredor escuro, apenas um pequeno foco de luz vindo da sala, a tv estava ligada e pelos sons, Lucas assistia uma de suas séries. O barulho de algo caindo veio do quarto da minha mãe - que naquele horário estava no trabalho há muito tempo -  devia ser Pintado, nosso gato.

- Pintado!? - entrei no quarto, acendi a luz e lá estava ele, em cima da escrivaninha, o porta canetas estava no chão e todas as canetas espalhadas. - Que gato bagunceiro!

Após juntar todas as canetas, coloquei-as de volta na escrivaninha e tirei o Pintado de lá, ele estava em cima de um caderno velho com uma capa em couro marrom, estranho, pois nunca o havia visto.

Coloquei pintado sobre a cama e peguei o caderno, quando o abri descobri que tratava-se de um diário. “Desde quando minha mãe tem um diário!?”, pensei. Em uma breve folheada, percebi que não haviam anotações diárias, apenas algumas específicas com datas antigas, as folhas estavam amareladas pelo tempo e tinha cheiro de papel velho, no final ainda havia uma boa quantidade de folhas limpas.

O folheei sem saber o que ler primeiro, tudo parecia muito interessante para mim, era um lado que eu não conhecia da Dona Maria Cecília. Parei em uma folha do início, falava de um tal Otávio, corri os olhos por toda folha, mas depois decidi ler tudo com calma.

07/04/1996
Hoje eu decidi me arrumar melhor para ir a escola, estava decidida a puxar assunto com Otávio, mas não consegui porque  quando cheguei à escola a Catarina e as amigas jararacas dela jogaram lama em meu vestido e falaram para eu voltar de onde vim, da favela.
Mãe, sempre diz que não é para eu dar ouvido à esses tipos de pessoas que só querem tirar nossa paz, mas hoje eu não pude dar ouvido ao conselho dela, corri em direção a Catarina e rolei na lama sem largar os cabelos dela! Eu estou dolorida até agora por causa disso! Mãe e Pai me deixaram de castigo, sorte não ter apanhado deles também, juro ter visto um sorrisinho nos lábios de mãe ao ouvir da diretora o que tinha acontecido, eu não sou de violência e ela sabe disso, mas Catarina era um caso antigo que eu não deixei passar.
O pior foi ver Otávio zombando de mim com todo o resto da escola, eu achei que ele seria diferente que me ajudaria a levantar e perguntaria como eu estava, mas não, ele é como todos os outros! E saber  disso doeu demais! Se ele soubesse o quanto gosto dele… mas, ele não merece nenhuma das lágrimas que já derramei hoje lembrando de tudo isso! Espero que toda essa vergonha passe logo, mas não tão rápido quanto eu quero que os sentimentos bons que eu tenho por ele passe! Quero esquecê-lo pra sempre!

-

Otávio babaca! - soltei, Pintado miou como se concordasse comigo.

Apaguei a luz do quarto e voltei ao meu levando o diário e Pintado comigo, queria saber mais sobre as histórias da minha mãe.

Mamãe sempre escreveu muito bem, apesar de não ter concluído os estudos​. Dificilmente a vemos sem um livro em mãos em suas horas vagas! Isso deve ter contribuído para seu desempenho na escrita, pois sempre me ajudou em redações e desenvolvimento de trabalhos, no entanto, ler algo que ela escreveu sobre ela mesma era inédito! E eu não podia ignorar todos os registros que estavam em minhas mãos.

Sentei-me na cama e passei algumas folhas, parei em uma que minha mãe citou o tio Toninho, a Tia Analu e o marido dela, Paulão.

14/06/1996
Hoje foi o dia mais feliz da minha vida! Mãe deixou eu ir na quermesse aqui perto de casa com Analu e Toninho, Ruan foi quem me convidou e como Toninho foi com a nova namorada e Analu com o Paulão, ficamos a noite toda sozinhos. Ruan foi muito cavalheiro, fez questão de parar nas barracas que tinham meus doces favoritos e me tratou muito bem, não teve vergonha de andar de mãos dadas comigo mesmo com um monte de gente da escola lá. No final da noite, antes de vir embora ele me pediu em namoro, eu aceitei, e nos beijamos. Foi tão bom… um sonho!


 - Como é que é!?

Eu não podia acreditar que minha mãe teve namorados antes do meu pai! Tudo bem, que eu não penso em casar com Nadinho, mas eu não esperava isso da minha mãe! Também queria entender porque minha mãe disse que Ruan não teve vergonha dela, porque ele teria!? Ela sempre foi tão linda! Hoje ainda atrai os olhares de alguns homens por onde passa.

Voltei algumas páginas procurando por algo que me traria respostas, não encontrei nada muito concreto, apenas uma anotação de Fevereiro de 1995.

20/02/1995
Odeio a nova escola! São um bando de animais e idiotas, não sabem de nada da vida e ficam zombando de mim e dos meus irmãos porque trabalhamos, como se trabalhar fosse vergonhoso! Só Deus pra me ajudar, porque minha vontade é sair daquela escola e nunca mais voltar pra lá.

Minha mãe e meus tios trabalhavam na feira e na rua vendendo salgados e cocadas que minha avó fazia para ajudar em casa, isso nunca foi vergonhoso para eles. Mas, claro que naquele tempo tinham uns otários na escola como hoje ainda tem!  Senti meu sangue ferver ao pensar que minha mãe e meus tios eram discriminados por ser honestos. Não imaginava que eles haviam passado por isso.

13/08/1996
Estou de castigo, de novo! Dessa vez foi porque pulei o muro de um clube que tem perto da escola para nadar na piscina, Ruan foi quem me convenceu e, por isso, mãe disse que só poderei ver ele em casa, por tempo indeterminado.
Estava muito frio, quase morri congelada depois de sair de lá, mas valeu muito a pena tudo isso.
Amo o Ruan!
MC + R

- Então, a dona Maria Cecília já aprontou muito por aí, não é!? - observei Pintado deitado aos meus pés no tapete felpudo - É amiguinho, isso aqui é um tesouro!

Decidi ir procurar o que comer na cozinha após meu estômago roncar pela terceira vez, ainda tinham tantas coisas para ler no diário, mas eu não conseguiria fazer tudo em uma noite.

Lucas preparava um suco enquanto as pipocas estouravam no microondas; na tv da sala havia um daqueles filmes de heróis pausado, ainda no início.

- A Alexandra veio te procurar, eu disse que você estava dormindo.

- Valeu! - falei séria, nossa discussão havia deixado um ar pesado entre nós.

- Ela vai te ligar - Lucas se serviu do suco e tomou um gole antes de ir até o microondas que já havia apitado. - Ju, desculpa.

- De boa, eu também exagerei um pouco.

- Não, é sério! Eu poderia ter sido menos áspero, mas isso não significa que mudei minha opinião sobre o Nando.

- O fato de eu ter admito que exagerei também não muda minha opinião sobre ele! - falei encostando-me na pia.

Lucas revirou os olhos e me encarou sorrindo.

- Você é uma cabeça dura mesmo!

- Somos! - pisquei para o meu gêmeo.

- Eu só não quero que nenhum idiota te machuque, maninha! - Lucas se aproximou​ para me abraçar e, como de costume, bagunçar meu cabelo, ele tinha a vantagem por ser mais alto.

Após preparar alguns sanduíches de queijo e presunto me juntei ao meu irmão para assistir o filme, porém meus pensamentos vagavam pelo diário que havia ficado debaixo do meu travesseiro no quarto. Tive vontade de contar a Lucas o que eu havia lido, mas não tive coragem, se ele não concordasse com a minha atitude de ler escondido o diário da nossa mãe teria que devolvê-lo, mas não queria fazer isso, não antes de ler pelo menos, metade de tudo aquilo.

O jantar foi estranho, era rotina esperar mamãe voltar do trabalho para sentarmos à mesa juntos, eu já havia escondido tantas coisas dela, mas naquela noite era como se eu estivesse fazendo a pior coisa do mundo, tipo, lendo seus pensamentos sem autorização, por isso, não conseguia encará-la! Eu odiava quando ela invadia minha privacidade e de repente eu estava fazendo algo muito parecido, talvez pior, porque ela não fazia ideia de que eu lia seu diário! Enquanto eu sempre sabia quando ela estava invadindo meu espaço, ela fazia questão de avisar que estava invadindo e porque estava fazendo isso! Como por exemplo, checar com quem falamos em nossas redes sociais, para ter certeza que não nos relacionamos com pedófilos, ladrões ou algo do tipo.

Como divido o quarto com Lucas tive que deixar a leitura do diário para o dia seguinte, o joguei dentro da mochila com meus livros e cadernos e depois tentei dormir, o dia seguinte seria de grandes surpresas!

Mãe é gente, como a gente!Onde histórias criam vida. Descubra agora