O sono da manhã pousava nos olhos do pajé como névoas de bonança pairam ao romper do dia sobre as profundas cavernas da montanha.
Martim parou indeciso, mas o rumor de seu passo penetrou no ouvido do ancião, e abalou o corpo decrépito. — Araquém dorme! murmurou o guerreiro devolvendo o passo.
O velho ficou imóvel:
— O pajé dorme porque já Tupã voltou o rosto para a terra e a luz correu os maus espíritos da treva. Mas o sono é leve nos olhos de Araquém, como o fumo do sapé no cocuruto da serra. Se o estrangeiro veio para o pajé, fale; seu ouvido escuta.
— O estrangeiro veio para te anunciar que parte.
— O hóspede é o senhor na cabana de Araquém; todos os caminhos estão abertos para ele. Tupã o leve à taba dos seus.
Vieram Caubi e Iracema:
— Caubi voltou, disse o guerreiro tabajara. Traz a Araquém o melhor de sua caça.
— O guerreiro Caubi é um grande caçador de montes e florestas. Os olhos de seu pai gostam de vê-lo.
O velho abriu as pálpebras e cerrou-as logo:
— Filha de Araquém, escolhe para teu hóspede o presente da volta e prepara o moquém da viagem. Se o estrangeiro precisa de guia, o guerreiro Caubi, senhor do caminho, o acompanhará.
O sono voltou aos olhos do pajé.
Enquanto Caubi pendurava no fumeiro as peças de caça, Iracema colheu a sua alva rede de algodão com franjas de penas, e acomodou-a dentro do uru de palha trançada.
Martim esperava na porta da cabana. A virgem veio a ele:
— Guerreiro, que levas o sono de meus olhos, leva a minha rede também. Quando nela dormires, falem em tua alma os sonhos de Iracema.
— Tua rede, virgem dos tabajaras, será minha companheira no deserto: venha embora o vento frio da noite, ela guardará para o estrangeiro o calor e o perfume do seio de Iracema.
Caubi saiu para ir à sua cabana, que ainda não tinha visto depois da volta. Iracema foi preparar o moquém da viagem. Ficaram sós na cabana o pajé, que ressonava, e o mancebo com sua tristeza.
O Sol, transmontando, já começava a declinar para o ocidente, quando o irmão de Iracema tornou da grande taba.
— O dia vai ficar triste, disse Caubi. A sombra caminha para a noite. É tempo de partir.
A virgem pousou a mão de leve no punho da rede de Araquém.
— Ele vai! murmuraram os lábios trêmulos.
O pajé levantou-se em pé no meio da cabana e acendeu o cachimbo. Ele e o mancebo trocaram a fumaça da despedida.
— Bem-ido seja o hóspede, como foi bem-vindo à cabana de Araquém.
O velho andou até a porta, para soltar ao vento uma espessa baforada de tabaco; quando o fumo se dissipou no ar, ele murmurou:
— Jurupari se esconda para deixar passar o hóspede do pajé.
Araquém voltou à rede e dormiu de novo. O mancebo tomou as suas armas mais pesadas que, chegando, suspendera às varas da cabana, e se dispôs a partir.
Adiante seguiu Caubi; a alguma distância o estrangeiro; logo após, Iracema.
Desceram a colina e entraram na mata sombria. O sabiá-do-sertão, mavioso cantor da tarde, escondido nas moitas espessas da ubaia, soltava já os prelúdios da suave endecha.
A virgem suspirou:
— A tarde é a tristeza do Sol. Os dias de Iracema vão ser longas tardes sem manhã, até que venha para ela a grande noite.
O mancebo se voltara. Seu lábio emudeceu, mas os olhos falaram. Uma lágrima correu pela face guerreira, como as umidades que durante os ardores do estio transudam da escarpa dos rochedos.
Caubi, avançando sempre, sumira-se entre a densa ramagem.
O seio da filha de Araquém arfou, como o esto da vaga que se franja de espuma, e soluçou. Mas sua alma, negra de tristura, teve ainda um pálido reflexo para iluminar a seca flor das faces. Assim em noite escura vem um fogofátuo luzir as brancas areias do tabuleiro.
— Estrangeiro, toma o último sorriso de Iracema... e foge!
A boca do guerreiro pousou na boca mimosa da virgem. Ficaram ambas assim unidas como dois frutos gêmeos do araçá, que saíram do seio da mesma flor.
A voz de Caubi chamou o estrangeiro. Iracema abraçou para não cair otronco de uma palmeira.