Espectro da Memória

5 0 0
                                    

Ainda não havia acostumado-me com a presença daquela que dizia ser a minha guardiã espiritual. Alguém que já havia falecido, porém voltava de algum lugar, para uma estadia de tempo indeterminado, no sobrado ao lado do qual eu morava. Alguém que carregava a aparência do primeiro e único amor da minha vida.

Sentamos em assentos próximos ao limite máximo da plataforma, longe dos poucos estranhos que aguardavam o mesmo trem.

"Liliya" - perguntei, mentalmente, olhando para o rio.

"Hum?" - a jovem respondeu, da mesma forma, virando o pescoço para mim, com aquela venda negra enrolada, ocultando seus olhos.

"Posso te chamar de Marianne? Se não incomodar..."

Ela meneou a cabeça e respondeu:

"Tudo bem... Apesar de não entender esse desejo de me chamar pelo nome de nascença..."

"Nunca tive oportunidade de te chamar pelo nome..."

Ela passou sua única mão sobre o meu rosto, aquecendo-me de vergonha naquele dia frio. A garoa fina arrastada pelos ventos fortes... Ocasionalmente atingiam nossas faces.

Eu sorri, mas ela permanecia com aquela expressão de indiferença, facilmente confundida com frieza ou excessiva seriedade. Ainda assim ela continuava linda, com seus longos cabelos brancos esvoaçados pelos ventos, os quais revelavam a cicatriz irregular que começava atrás da orelha delicada e terminava no meio do pescoço delgado.

"E também, sempre que..." - prossegui.

O trem surgia. Após pouco mais de cinco minutos desde a nossa chegada. Levantamo-nos, sem pressa. E observei pela última vez a imponência de sua estatura consideravelmente baixa. A qual tanto me agradava.

"Continue o que estava falando" - solicitou ela, enquanto entrávamos no primeiro vagão; escuro e vazio.

"Não..." - respondi, sorridente, abraçando sutilmente sua cabeça contra meu peito.

Por Onde Cruza a Via LácteaOnde histórias criam vida. Descubra agora