Meu Amigo Charlie

A última carta

O último depoimento é hoje e minha barriga gela só de pensar que terei que contar para o delegado sobre aquele dia, tinha esperanças de que ele pudesse ter esquecido disso.

Os repórteres pareciam alvoroçados com a finalização dos depoimentos, voltaram a ligar depois de alguns dias sumidos. Meu pai parecia tão aborrecido, que nem me olhou direito. Apenas me deu bom dia e se sentou em sua velha poltrona, ele não ia trabalhar hoje, insistiram muito para que pudessem me acompanhar e eu cedi rápido, não estava muito animada em sair por ai enfrentando repórteres, alunos, detetive, professores, sozinho.

A escola iria sem explodida hoje depois que os depoimentos tivesse finalmente acabado, me surpreendi com a rapidez disso. Mas o pai de Louis Daniel, era também deputado e eu não fazia ideia disso, pelo jeito ele era o cara que comandava tudo por aqui. Ele conseguiu acelerar o processo todo, os pais queriam que a escola fosse detonada, os alunos e professores também, então ela seria e eu realmente não ligava nem um pouco para isso.

Minha mãe voltava das compras e parecia muito triste.

- Lauren voltou. - escutar o nome da mãe de Charlie me deixou um abalado, ninguém tinha lhe visto depois que colocou o marido na rua.

Pelo jeito ela tinha saído no meio da noite, ido embora, mas sua casa ainda estava cheia de suas coisas. Das coisas de Charlie, o que fez pensar que eu nunca estive lá, nunca fui ao quarto dele, nunca vi suas coisas. Ele sempre ficou aqui, era um hábito e nunca senti a necessidade de ir até lá, não quando o pai dele morava lá.

- Como ela está? - meu pai tinha deixado a raiva de lado, sua expressão parecia um misto de tristeza e pena.

- Ela vai vender a casa e quer ver você Logan.

Eu não disse nada, já tinha em mente o que poderia ser.

Fui para o meu quarto me trocar, não pensei que essa possibilidade apareceria. Nunca pensei em ir até lá, mexer em suas roupas e coisas, não por esse motivo.

Minha mãe estava na porta me esperando, meu pai vinha logo atrás, eles me abraçaram e naquele momento eu sabia que tinha algo que Charlie não teve oportunidade em ter, uma família unida.

Lauren estava sentada nos degraus da entrada em frente a sua casa, fumava um cigarro e tinha olheiras profundos, seus olhos estavam inchados e muito vermelhos. Ela devia chorar todos os dias.

Ela nos conduziu para dentro, estava tendo progresso, tinha muitas coisas dentro de caixas, mas havia muita coisa pela frente, Lauren tinha voltado na noite passada e ninguém havia percebido, nem eu. Pelo jeito não queria chamar muito atenção. Medo eu acho.

Ela tinha sido a primeira a dar depoimento e não foi mais chamada desde então. A polícia já tinha feito perícia na casa e ela podia finalmente vender aquilo que lhe prendia a essa cidade.

- Logan, você pode vir comigo até lá em cima? - sua voz estava embargada pelo choro, suas lágrimas vinham tímidas. Eu apenas assenti, estava com um nó na garganta.

Ela me conduzia até o andar de cima onde ficavam os quartos, o corredor estava iluminado com uma luz fraca que parecia prestes a queimar, aquilo me dava um pouco de medo, a situação não ajudava.

O quarto de Charlie ficava no fim do corredor, tinha uma placa do Darth Vader escrita perigo. Eu sorri de canto, ele era com certeza um nerd completo, esse era ele afinal.

- A última vez que entrei ai foi para pegar as roupas que ele usaria em seu enterro. Ele deixou uma carta sabe, dizendo os motivos dele, pedindo desculpas. Charlie pediu para ser enterrado com a camisa de Star Wars que você havia dado pra ele no segundo ano. - aquilo me desestabilizou, foi como se uma faca estivesse me perfurando e eu chorei, me esquecendo que a mãe de Charlie estava ali. Me encostei na porta e me deixei levar, enquanto a sua mãe ia falando.

- Ele te deixou uma carta Logan. Eu não a peguei, ficou como ele a deixou. Junto com uma foto de vocês juntos. - quanto mais ela falava, mais eu queria sumir, mais eu queria que nada disso tivesse acontecido, mais eu tinha raiva, mais eu tinha saudades. - Eu sabia sobre vocês dois, mas não queria acreditar, eu não aceitava. Fingi que nada daquilo estava acontecendo, torcendo pra que Richard não soubesse de nada. Como eu queria ter feito tudo diferente, eu daria tudo pra ter meu filho de volta e dizer a ele que o aceitava do jeito que ele era. - ela me tocou nos ombros e eu a encarei aos prantos, ela possuía as mesmas bochechas gordinhas de Charlie. E eu a abracei.

Ela retribui o abraço de maneira terna, parecia frágil envolta aos meus braços cumpridos, suas lágrimas competiam com as minhas. Lauren me entregou as chaves do quarto e saiu para me dar espaço.

Eu não sabia o que encontraria, por um momento eu rezei para encontrar Charlie vivo, rezei para que tudo aquilo não tivesse passado de um pesadelo. Mas quando abri a porta, o quarto estava vazio, a cama estava arrumada e suas roupas estavam penduradas. O cheiro do quarto ainda exalava o seu perfume e eu me perguntava se aquilo era só minha imaginação.

O papel de parece era cheio de naves, seu lençol me parecia velho, pois ainda tinha cowboys, coisas que ele não gostava desde os dez. Havia inúmeros pôsteres pendurados, do senhor dos anéis, de Star Wars, Harry Potter, Far Cry e até mesmo do Crash. Balancei a cabeça, ele era muito nerd mesmo. Não queria sentar na cama e desfazer o que ele havia arrumado. Havia um mural de fotos perto de sua cabeceira e eu pude reconhecer muitas, a maioria era nossa, quando eramos crianças e até mesmo aquela que ele tirou no começo do segundo ano, antes de tudo acontecer. Tínhamos feito uma sessão de filmes em casa e ele estava muito feliz que tudo estava dando certo no fim das contas. Ele adorava tirar fotos, tinha comprado uma instax por que adorava esse ar vintage que ela tem.

A carta estava encostada junto a nossa foto de infância, ele sempre amou aquela foto. Era Haloween, ele estava vestido de Luke e eu de Yoda, e estávamos rindo por algum motivo que não me lembro, minha mãe tirou a foto e só nos mostrou alguns anos depois. Ele havia amado a foto e então deixei uma cópia com ele. Estava num envelope branco, sua letra não parecia tremida, estava firme e inclinada como sempre foi. O envelope parecia pesado; abri e de dentro caiu um monte de fotos nossas das quais não me lembrava dele ter tirado. A maioria das fotos me mostra distraído, olhando para algum lugar qualquer, em outras eu dormia sobre seu peito. E a única que eu me lembrava, era uma que ele havia tirado na velha fazenda, estávamos nos beijando. Abracei as fotos, queria gritar, berrar aos quatro cantos e perguntar ao universo por que? Por que o Charlie? Por que ele precisou passar por tudo isso? Por que ele fez o que fez? Ele não estava sozinho, ele tinha a mim e eu... sinto tanta a falta dele.

Não sei por quanto tempo fique ali chorando, mas parecia que tinha cochilado, ainda estava cedo e pelo jeito ainda não passava da hora para o último depoimento, pois meus pais pareciam que ainda ajudavam Lauren a encaixotar as coisas.

Segurava a carta junto a mim, estava com medo de seu conteúdo, mas minha ansiedade já estava no limite.

Oi Logan, não sei por onde começar...

Sempre pedi muitas desculpas a você, talvez por que nunca consegui pensar em você longe de mim. Aquele dia em que invadi sua casa, estava desesperado, não estava aguentando mais ficar longe de você. Eu tinha entendido o que sentia por você e eu tinha aceitado, que aquilo era real, não estava ficando louco. Não sabia o que fazer sobre isso, mas eu, pelo menos, aceitava. E quando você me disse que sentia a mesma coisa, fiquei chocado, não precisaria remoer aqueles sentimentos pra sempre, eu podia viver eles. E ficar com você, beijar você, como sempre quis fazer, foram os melhores dias da minha vida e eu agradeço por tê-los vivido com você.

Você provavelmente vai ler isso depois que tudo tiver acontecido, talvez meses ou anos depois, será que você é um velhinho agora? Eu sempre quis ser como você Logan, você enxerga o mundo com um otimismo invejável, nunca entendi como você consegue isso. Mas você é único, espero que mesmo depois de tudo, eu não te faça perder a esperança de dias melhores.

Espero que você um dia possa me perdoar por tudo o que vou fazer, espero que você nunca me esqueça, por favor, não me esqueça.

Eu te amo Logan.

- Nunca vou te esquecer Charlie. - levei o papel a boca e o beijei. Charlie me via como nunca pude pensar que alguém um dia me veria, somos únicos no universo, mas ele foi meu infinito e sempre será.