A noite desfilava pela cidade de Civitadei como uma nobre dama ataviada com um longo vestido negro de linho que farfalhava com o assobio do vento frio que sempre a acompanhava como um amante apaixonado. A sua passarela sempre estava iluminada pelas luzes azuladas das vias da cidade contrastando com a escuridão que ela trazia.
Civitadei se negava a dormir nas trevas, se erguia em sua majestade como a cidade central do mundo, a cidade que nunca dormia. Se mantinha acessa para guiar a humanidade para o caminho correto, era a morada de Deus e por isso nunca se dava o luxo de perder o embate diário com a dama da noite, em seu âmago se orgulhava disso.
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Zalazar estava como de costume fitando o horizonte da cidade no topo do templo divino, a construção mais imponente de Civitadei que se agigantava por quinhentos metros ate o céu como uma oferenda de aço e concreto do homem a Deus que se erguia como um totem. Um objeto de adoração e temor que permanecia isolado no centro da cidade como um martelo de justiça que não deixava a população esquecer-se de Deus e mais importante, suas leis. Apoiava seus braços na cerca que delimitava o grande terraço do prédio, era sua hora favorita do dia, onde toda cidade contrastava com a escuridão com as luzes de neon azul instaladas nas extremidades de suas avenidas suspensas que desciam, subiam e se cruzavam no ar como uma brincadeira de cama de gato. Abaixo das vias os transeuntes se deslocavam rapidamente para a estação de gerenciamento de comportamento mais próxima, já estava perto do horário do soar da trombeta do templo e elas se preparavam para cumprir sua obrigação diária escaneando suas mãos. Zalazar coçou inconscientemente a mão direita logo abaixo do dedão onde conseguia sentir o pequeno objeto retangular sob sua pele. Sentia o chip neural que armazenava todas as suas atividades diárias assim como seus pensamentos.
Devido à natureza de suas atividades havia realizado o escaneamento antes do cair da noite. Ergueu o olhar da multidão e o deteve em um dos muitos outdoors eletrônicos espalhados pela cidade que continham as ordenanças de Deus. Rapidamente os dizeres mudaram de "Seja submisso a classe superior" para "Realize o escaneamento durante os próximos 30 minutos" e então a trombeta rasgou a quietude da noite fazendo Zalazar levar as mãos aos ouvidos com o intuito de abafar o grande rugido que ecoava pelos quatro cantos da cidade. Rugido de uma grande fera que fincavam suas garras nas entranhas do mundo retalhando a liberdade.
Uma voz conhecida soou áspera atrás de Zalazar.
— Quando a trombeta soa é nosso dever já estar no carro fazendo a ronda e não aqui em cima perdido em devaneios!
— Como posso não me perder em devaneios tendo essa bela vista? Somos privilegiados Lou Ane, afinal poucos tem acesso ao topo desde prédio. — Olhe para lá — Disse ainda de costas e apontando para o horizonte. Circundando as avenidas suspensas estavam os diversos prédios da cidade, não havia casas em Civitadei, como também não havia quinas e nada de forma retangular, todos os prédios eram circulares, tinham altura e espaçamento padronizados, com a única exceção do templo divino. A cidade exibia uma simetria aterradora, como que se gritasse que não eram toleradas imperfeiçoes no reino de Deus. E claro existia uma exceção, o rio Tern circundava o perímetro da cidade como um colar deixando-a ilhada e na margem oposta do rio viviam os maculados em seus barracos feitos de restos de madeira e lixo, a casta mais baixa da cidade destinada aos serviços impuros como limpar os esgotos da cidade. A linha que o rio formava separava a classe mais baixa das mais altas. Mais quem realmente se enganava? Civitadei era uma linda cidade que nunca se apagava e que escondia uma escuridão mais profunda do que qualquer luz incandescente, uma cidade com uma população de marionetes tendo Deus como seu ventríloquo. Zalazar balançou a cabeça como para afastar os pensamentos perigosos e sentiu a mão de Lou Ane em seu ombro direito o puxando.
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Ao Deus que odeio
Science FictionEm um mundo pós-apocalíptico uma entidade chamada Deus controla, segrega em classes e pune os atos da humanidade através de um chip que é obrigatoriamente instalado na mão de cada individuo. Para manter a ordem o templo divino usa os agentes da inq...