Chuva... torrencial chuva. Infindável paredão de gotas que turva a visão da minha já não translúcida janela. Uma manhã gelada, úmida e boa para se ficar metido por baixo das cobertas se arrependendo de ter nascido. Algo que eu fazia muito bem até que o maldito som esganiçado da minha campainha atravessasse todo o apartamento e me acertasse na cabeça como a flecha cega de um velho chefe índio.
Para meu espanto, a figura soturna que se apresentava molhado igual a um pinto plantado na minha porta era nada mais nada menos que o velho Zé. O dono do bar mais próximo. Bem, bar era muita lisonja da minha parte para o referido estabelecimento. Ele era o feliz proprietário da pocilga local. O corredor do outro lado da minha porta era um lugar escuro e pavoroso como as minhas lembranças de encontros depois do sexto copo, entretanto, entre uma trovoada e outra pude perceber uma silhueta bem menor por trás do corpulento cidadão, algo miúdo e mais gracioso com aroma de óleo de jasmim.
A pequena e encantadora figura era Amanda a filha mais nova do meu balconista favorito. Visto que Zé não estava sozinho, tive que ser mais cortês que o habitual. Convidei ambos a entrar, joguei uma roupa suja maior por cima das menores para disfarçar a bagunça, ofereci umas bebidas em copos semi limpos e fechei meu zíper, afinal tinha uma dama em casa.
Zé, na presença da filhota se tornara mais calmo e educado pelo jeito, uns três tons de voz mais baixo, praticamente não utilizou-se da corriqueira chuva de xingamentos. Mesmo assim não teve muitos tratos para explicar o porquê de estar ali.
— Rick dinheiro aos tubos eu não tenho para te dar e você nem de longe é o tipo do sacripanta que eu quero perto da minha Amanda, mas essa garota é fogo na roupa e não é qualquer um que consegue manter ela nos eixos.
Afirmou o velho fitando a jovem de rabo de olho. Eu PRECISO que ela chegue no expresso de prata até amanhã no final do dia.
— Te dou o que tem nesse envelope e uma por conta da casa todos os dias para abrir seu expediente.
Arremessou na mesa com a atitude de quem paga uma puta conhecia, um envelope pardo bem magrinho, esquálido posso dizer.
Toda via a situação não era só dinheiro envolvido, havia sentimento ali. Existia sentimento por trás daquela proposta. Não podia ignorar o infinito amor que eu possuía por bebida grátis, sem sequer olhar o envelope apertei a mão do Zé, lhe dei dois tapas nas costas e garanti que a pequena marota amanhã embarcava nem que fosse amarrada com as próprias anáguas.
Esperamos a chuva dar uma trégua e fomos até fora do prédio para tirar as coisas da menina do carro do Zé e passar para o bom é velho fuscão azul. No caminho o velhaco me explicou um pouco mais dessa história de viagem de trem. A menina era uma peralta, já tinha tacado fogo no bar umas duas vezes pelo menos, roubado e acabado com o carro do pai, batido em dois marmanjos da faculdade e mandado um pra ganhar dentes novos. Em um resumo breve ela era uma pimenta ardida.
Entretanto, alguma promessa feita para santo Antônio pela esposa do Zé surtiu efeito e a garota aceitou casar com o filho mais velho do advogado da cidade, o Dr. Loremberg.
Mas como a Amanda não era mole, só aceitou casar se fosse para o jantar de noivado no expresso do Sol, um trem caro horrores, que só sai uma vez por mês e ele parte de uma estação a umas quatro cidades daqui. Foi nessa que eu entrei, quem mais ia levar esse caro bomba por quatro cidades a troco de bananas, nem o pai topou. Sobrou pro bacana aqui.
Sem muito mais o que fazer e sem a menor vontade de ficar enchendo linguiça com o Zé naquele frio, guardei as malas da Amanda no fuscão azul, peguei a passagem do trem e dispensei o velho, afinal alguém tem que embriagar o povo desde lugar e esse era o trabalho desse muquirana no planeta.
Antes de abrir a porta já havia feito mentalmente todo o discurso de como seria a viagem e fiz também uma lista rápida de tudo que deveria levar. Abri a porta e...
FUDEU! A GAROTA SUMIU!
Pela minha santa Achirupita como essa muleca saiu daqui com a porta trancada? Fiz a análise rápida da cena. Porta trancada por fora e as chaves comigo, a saída de emergência do apartamento é só uma foto de porta colada na parede. Janelas do banheiro, cozinha e quarto com grades, a do escritório emperrada. O cheiro de jasmim estava bem mais forte do que quando ela chegou, óleo de jasmim, ela usou o óleo de jasmim para amaciar a janela, o envelope do Zé não está na mesa também.
Fui até a janela e pimba. Macia como namorada que ganhou um diamante de aniversário, macia e fácil de abrir. Me pus para fora do parapeito e ouvi os sapatinhos de Boneca patinando no beco ainda molhados da chuva. Pelo jeito, ela andou pelos beirais até a escada de incêndio do vizinho. Já eu não tinha esse tempo, me segurei em um cabo solto de antena, enrosquei as pernas e desci como uma flecha.
Estava eu praticando os velhos exercícios da caserna descendo de rapel, só não estava na minha equação o fato que eu estava mais velho que minhas lembranças de quartel. Quando cheguei ao solo meus joelhos pareciam ter caído da lua e eu não segurei definitivamente muito bem aquele cabo, minhas mãos estavam em chamas, dava para ter acendido o cigarro se não tivesse voltado a chover.
Fui em desabalada carreira na direção da Amanda, o sobretudo encharcado, o joelho latejando e anos fumando meu tornaram furtivo tal com uma lontra correndo em uma fábrica de lâmpadas. Pelo menos uns 200 metros de distância ela me viu, não tinha muitas opções quando percebi que ela apertaria o passo.
Peguei a arma e disparei, na lâmpada do poste a esquerda dela. Uma série de acontecimentos calculados. Atirei na lâmpada, ela se assustou e olhou para o estouro no poste, não viu a raiz da árvore ressaltada na calçada, tropeçou e foi conhecer uma velha amiga minha: a sarjeta.
Amanda não ficou nada feliz de beijar o chão. Todo o moreno da pele deu lugar a um pálido mórbido. A menina parecia maIs assustada que a minha segunda esposa quando viu o que ia ganhar na divisão dos bens.
Por um profundo conhecimento de causa sabia que ela ia se aproveitar do meu mancar e tentar me dar uma volta. Fui obrigado a usar a manobra troglodita. Em um gesto rápido a coloquei no ombro direito, segurei forte enquanto ela balançava as pernas, me socava nas costas e falava coisas que uma dama não deveria falar sobre a santa mãezinha de ninguém.Quando arremessei a menina no banco carona do fusca resolvi prestar atenção na explicação da pimentinha para a fuga. Ela de verdade não queria viajar no bendito expresso de prata, ela queria ir pedindo carona para viver sua última aventura antes do casório. Amanda realmente não acreditava que alguém ia ceder a exigência escalafobética dela. Entretanto, o sogro faria de tudo para ter a estudante n° 1 de direito na família, e voilà! Estamos aqui indo pegar um trem.
Sem muitas delongas iniciamos nossa viagem.
Meus queridos leitores espero que gostem desse pequeno conto do detive Rick, que será postado em duas partes. Não me demoro a postar a segunda parte. Fiquem atentos!
Não esqueçam de comentar suas opiniões, favoritar e me colocar lá na sua biblioteca para poder reler as desventuras do Rick quantas vezes der vontade.
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A CADEIRA B-27 / Arquivos Noir (Completo)
Short Story• A CADEIRA B-27 Notória ocupante da cadeira de #89 no Ranking de conto. O conto que a Batata Crítica amou e deu 99%. Só você não veio aqui conhecer a pimentinha mais ardida. 🕵SINOPSE🕵 Dentro do infindável número de casos do Detetive Rick, A Cade...