O javali de Calidon

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Sete dias haviam passado desde o nascimento do pequeno Meleagro. Sua mãe, Altéia,
recuperava-se do parto. Altéia era casada com Enéas, o rei de Calidon. que estava muito feliz com
o nascimento do filho. A noite já caíra sobre o palácio, quando a jovem mãe recebeu a visita
inesperada das Parcas, as deusas que presidem o destino. Eram três irmãs e andavam sempre
juntas. Sua ocupação incessante era fiar e desfiar o destino dos mortais.
— Rainha, viemos até aqui para lhe dar um trágico aviso — disse Cloto, uma das Parcas,
sem desviar os olhos do seu trabalho de tecelã.
Altéia ergueu a cabeça do encosto de seu divã, encarando-as, assustada. — Um trágico aviso? — disse ela, voltando-se imediatamente para o berço, onde seu
filho dormia sossegadamente.
— E exatamente sobre este inocente — disse a outra Parca, que se chamava Laquesis e
cuja atribuição era marcar o número exato dos dias de vida que cabem a cada mortal.
— Não...! — exclamou a rainha, lançando-se aos pés do berço.
— Veja aquele tição que arde na lareira — disse Átropos, a terceira Parca. responsável
por cortar o fio da vida humana, quando ela chega ao seu final. — O tempo de vida de seu filho
não será mais longo do que o tempo que aquele tição levará para arder até o fim!
Altéia, apavorada, lançou-se até a lareira. De joelhos, diante das chamas, introduziu a
trêmula mão dentro das brasas, tirando dali o tição fatal. Em seguida, apagou-o nas dobras de
suas vestes. Quando se voltou, porém, as três mensageiras já haviam desaparecido.
Imediatamente correu para o quarto e guardou o tição apagado, com todo o cuidado, no seu baú
mais secreto.
Muitos anos se passaram. Meleagro teve uma infância feliz e cresceu até tornar-se um
jovem robusto e saudável. Um dia estava conversando com seu pai. Enéas, quando um escravo
surgiu correndo, trazendo uma assustadora notícia.
— Meu rei, um monstruoso javali está devastando todo o reino! — disse, com os olhos
esgazeados e as mãos postas na cabeça.
Meleagro ficou perplexo. Seu pai, no entanto, desconfiava já da razão daquela terrível
praga.
— Acho que sei o que é, meu filho — disse o rei, um tanto vexado. — Deve ser um
castigo de Diana, a cujo sacrifício faltei alguns dias atrás.
De fato, a deusa dos caçadores estava encolerizada com o rei de Calidon e por esta razão
mandara o terrível javali para devastar, sem piedade, todas as plantações e rebanhos que
encontrasse pela frente. Tão grande era a fúria do animal, que os campos ficavam desertos depois
da sua terrível aparição. O monstro já despedaçara diversos aldeões, invadindo até mesmo as
casas para matar e comer o restante de seus habitantes. Todo dia chegavam às portas da cidade
imensos contingentes de camponeses feridos em busca de refúgio.
Meleagro logo se prontificou a enfrentar a fera.
— Deixe comigo, meu pai! — disse, feliz com a oportunidade de exercitar a sua
juventude e valentia.
— Cuidado, meu filho — advertiu o pai, que temia, na verdade, mais a fúria ia deusa do
que a do próprio animal. — Não se preocupe. Reunirei os melhores homens deste reino e juntos daremos caça ao
monstro, até exterminá-lo.
Empolgado, o jovem retirou-se a toda pressa, subindo em seu cavalo para reunir seus
companheiros de caçada. No mesmo dia estavam já todos à beira do campo, prontos para partir.
Enéas, no entanto, aconselhou Meleagro a refrear o seu ímpeto e a partir somente na manhã
seguinte, pois seria suicídio enfrentar a fera durante a noite.
Impacientes, os caçadores montaram um acampamento na saída da cidade, sem voltar às
suas casas, tal a ânsia de darem caça ao temível javali. Entre eles havia personalidades famosas,
como os irmãos Castor e Pólux, Jasão, Teseu, entre muitos outros. Também unidos ao grupo
estavam dois tios de Meleagro, irmãos de sua mãe Altéia.
Misturada ao grupo havia, ainda, uma mulher. Seu nome era Atalanta, uma bela jovem,
filha do rei da Arcádia. A bela moça trajava-se como uma amazona, com um dos peitos a
descoberto, como é hábito naquelas valentes guerreiras. Meleagro, tão logo a viu, apaixonou-se
perdidamente. Durante toda a noite tentou se aproximar dela, mas era sempre interrompido por
alguém, de modo que teve de aguardar o outro dia para declarar-se.
Quando o primeiro raio do sol surgiu no horizonte, já estavam todos em pé, tendo feito o
desjejum sob a pálida luz da aurora. Atalanta estava a um canto, prendendo os cabelos com uma
tiara, a fim de não ter a visão prejudicada. Antes que Meleagro pudesse conversar com ela, a
jovem montou agilmente sobre o dorso de seu cavalo, deixando à mostra suas coxas bronzeadas
e firmes, cobertas por uma fina penugem dourada. O cavalo branco abriu os grandes dentes,
mastigando o freio, enquanto Atalanta o conduzia para junto dos homens, que faziam retinir suas
lanças e seus arcos em meio à semi-escuridão.
— Companheiros, é chegada a hora de enfrentarmos a fera! — gritou
Meleagro, lançando um último olhar sobre Atalanta, que lhe devolveu um olhar intrigado.
— Adiante, caçadores! — disse, esporeando sua montaria.
O ruído intenso do galope das montarias feriu a manhã, como se um trovão partido do
próprio solo se erguesse até as nuvens, levantando dos galhos das árvores uma multidão de aves
assustadas. Durante o trajeto, mata adentro, os caçadores cruzaram com diversos cadáveres de
animais mortos, todos esquartejados. Mais adiante encontraram um boi partido ao meio, cuja
cabeça pendia de um galho, como se a fera já soubesse da vinda dos caçadores e os aguardasse
com aquele troféu macabro.
— Atenção, todos! — exclamou Meleagro, fazendo sinal para que suspendessem o galope
— Creio que encontramos o covil da fera. De fato, uma trilha de sangue conduzia para a entrada de uma gruta escura, que parecia
ter sido aberta há pouco pelas presas imensas do animal. Um dos guerreiros desmontou e foi
investigar a entrada.
— Cuidado, vá com calma... — disse Teseu, que estava próximo.
O bosque inteiro estava coberto de redes para apanhar o animal. Logo na saída da gruta
estava montada a principal delas — uma grande tela de tecido reforçado, na qual o animal acuado
acabaria, fatalmente, por se enredar, tão logo I enveredasse para aquele lado. O caçador
aproximou-se ainda mais da entrada da gruta com uma tocha. Estavam todos esperando a saída
do monstro quando, vindo por trás das costas de todos, o javali monstruoso surgiu, sem que
ninguém o percebesse. Meleagro sentiu roçar-lhe nas pernas as cerdas eriçadas do javali, que num
salto lançou-se às costas de um infeliz caçador, empurrando-o para dentro da gruta. Um horrível
grito partiu de dentro da caverna, enquanto todos se I acercavam de sua entrada, de lanças em
punho. Teseu, desmontando, já ia entrando na gruta, quando o corpo do caçador foi arremessado
para fora da caverna, em pedaços.
— Maldito assassino! — gritou Meleagro.
Atalanta, um pouco mais atrás, adiantou a sua montaria, colocando-se também na linha
de frente, à espera da saída da fera. Os cães pulavam ao redor esganiçando-se, quando o
gigantesco javali surgiu finalmente da boca escura da caverna, num segundo arremesso que
encheu a todos de assombro. O animal parecia ter asas. Mas foi somente quando ele se enredou
nas malhas da rede que o aguardava na entrada de uma clareira que todos puderam avaliar o seu
real tamanho. De fato, a sua estatura excedia a de qualquer outro javali jamais visto. Seus olhos
despediam fogo, e uma baba leitosa pendia, espumante, de suas gigantescas presas, ainda
vermelhas de sangue. Durou pouco, porém, a sua prisão, pois, debatendo-se com fúria sob as
cordas, em poucos segundos as fez em pedaços, como se estivesse envolto por uma simples teia
de aranha, arrancando pelas raízes as duas árvores que sustentavam a rede. Com outro rugido
bestial — que pareceu a todos uma risada monstruosa — a fera arremessou-se para dentro da
mata, metendo-se por entre os troncos grossos das árvores, enquanto ia limpando o terreno com
suas presas, diante das quais nada resistia.
— Atrás dele! — rugiu Meleagro.
Um novo estrondo de cascos ressoou por toda a floresta. Os cavalos, relinchando,
lançaram-se num galope cego em meio às árvores, enquanto os cães iam à frente, de dentes
arreganhados, parecendo disputar o privilégio de cravar por primeiro os dentes no flanco do
animal. Meleagro passou com sua montaria na dianteira, mas logo viu que o cavalo branco de
Atalanta lhe ultrapassava. A guerreira mantinha as rédeas presas com duas voltas em sua mão direita e com a esquerda empunhava a lança. Logo atrás, os demais caçadores avançavam num
estrépito de gritos e armas que fazia eco por todo o bosque. As árvores passavam numa
velocidade vertiginosa. Já podiam divisar agora o javali, que tinha no seu encalço um dos cães.
Mas, desejando livrar-se do cão, que já o mordera duas vezes, o javali deu uma cambalhota e foi
parar um pouco mais adiante, de frente para seus perseguidores. O cão, surpreendido por aquela
inesperada ofensiva, travou, a princípio, o passo. Em seguida avançou novamente, pronto para o
corpo a corpo inevitável. Infelizmente para ele, o combate era demasiado desigual. O javali, pelo
menos sete ou oito vezes maior do que o valente cão, atracou-se com o seu agressor, deixando as
presas de lado e cravando os dentes na cabeça do cachorro. Ouviu-se um ganido rápido e terrível,
e logo o cadáver do cachorro era lançado ao chão, numa poça de sangue.
Assim que terminou de matar o inimigo, o javali deu as costas outra vez aos seus
perseguidores.
— Vamos lá! O maldito demônio está entrando naquela clareira! — berrou Meleagro. —
Ali teremos espaço bastante para abatê-lo!
As rédeas foram guiadas naquela direção, e logo todos os cavalos entravam no campo
aberto, que mediava entre um bosque e o outro. As flechas partiam silvando dos arcos, passando
como raios prateados sobre a cabeça dos cavaleiros que iam à frente. A pele do animal,
entretanto, era muito grossa, e suas cerdas atuavam como um escudo, fazendo com que somente
algumas lhe penetrassem os flancos, o que não parecia lhe causar a menor dor, eletrizado que
estava pela volúpia da fuga, que somente os animais verdadeiramente acuados conhecem.
Aos poucos, porém, o javali parecia perder o fôlego, deixando que os cavaleiros
emparelhassem com ele. De fato, Meleagro já tinha a cabeça do animal quase ao alcance de sua
lança. Mas a fera era esperta o bastante para desviar-se dos seus golpes. Em meio à correria, as
patas de um dos cavalos ficou ao alcance das suas poderosas presas. O animal não desperdiçou a
ocasião: mesmo na corrida, levantou o cavalo com um movimento extraordinariamente violento
da cabe-.... fazendo cora que tanto o cavalo quanto o cavaleiro fossem arremessados para o ar,
indo cair sobre os outros que vinham logo atrás. Atalanta, pressentindo uma sombra que descia
do alto, ainda conseguiu, abaixando a cabeça, escapar do dorso do cavalo, que lhe passou rente
aos cabelos. Uma seta disparada direto no olho do javali pela valente caçadora arrancou,
finalmente, um urro de dor do animal.
Pela primeira vez o sangue espesso do monstro vertia em ondas pela campina.
— Bravo! — gritou Meleagro, lisonjeando a amada.
Atalanta, vermelha do esforço, prosseguiu, deixando escapar um discreto sorriso de
satisfação. O javali, cego pelo próprio sangue e sentindo o seu fim próximo, decidiu parar e
enfrentar os agressores, num combate suicida. Um dos cães arrancou-lhe uma das orelhas com
uma dentada certeira, enquanto outro cravou os dentes em seu focinho, o que o fez urrar de dor
e pisotear o agressor até a morte. Mas logo Meleagro aproximou-se e, procurando com calma
enquanto os demais o atacavam às cegas, enxergou um espaço desprotegido no flanco do javali.
Inclinando-se até sentir o cheiro do suor e do sangue do animal, Meleagro enterrou ali a sua
lança, com toda a força de que era capaz. Porém o fez com tal vigor e determinação que sua mão
raspou nas cerdas do javali, deixando ali raspas da sua pele.
O javali tombou mortalmente ferido, escarvando o chão com as patas. Os demais
caçadores caíram em seguida sobre a presa, terminando de abatê-la. Atalanta tinha o seio
descoberto rijo e lustroso de suor. Meleagro, aproveitando o entusiasmo, uniu seu corpo ao dela,
ainda em cima dos cavalos, num abraço audacioso e imprevisto, que a deixou confusa, sem saber
se o repelia ou se o estreitava ainda mais. Meleagro, num pulo, sacou a espada, arrancou a pele do
animal, bem como a enorme cabeça, e as ofereceu à sua amada, como prêmio pela vitória.
Os tios de Meleagro, no entanto, levantaram-se, indignados com aquela audácia:
— Cale-se, Meleagro! — gritou enfurecido um deles. — Troféus não são para mulheres!
Descendo do cavalo, o homem arrancou brutalmente das mãos de Atalanta o precioso
troféu, num gesto que acendeu a ira do sobrinho. Instantaneamente. Meleagro, cego pela fúria,
enterrou no peito do tio o aço inteiro da espada, fazendo o mesmo com o outro tio, que tentava
impedi-lo. Enquanto isso, na cidade a notícia da vitória já chegara. Altéia, mãe de Meleagro,
dirigiu-se ao templo para agradecer pela vitória do filho. No caminho, porém, cruzou com os
corpos de seus dois irmãos. Espantada com a notícia de que Meleagro os havia abatido. Altéia,
enfurecida, correu de volta para casa. Recolhida no seu quarto, viu a lareira acesa e imediatamente
lembrou-se da profecia das Parcas. Num gesto de desespero, abriu o baú secreto onde mantinha
guardado o tição fatal. Tendo nas mãos trêmulas o pedaço de madeira semicarbonizado, levou-o
até as chamas.
— Filho perverso, assassino de seu próprio sangue! — gritava, descabelando-se.
Consumida pela dúvida, porém, hesitou ainda quatro vezes antes de lançar o tição às
chamas. Mas finalmente o jogou no fogo.
— Que pague por seu crime, mesmo sendo meu próprio filho! — exclamou Altéia.
Enquanto tentava convencer a si mesma da justiça de seu ato, as chamas devoraram o
tição. Meleagro, longe dali, agonizou sob a dor terrível das chamas, sem saber que sua própria
mãe era a causadora de sua morte. Atalanta, segurando-o em seus braços, recebeu na face o
último e ardente suspiro do filho de Altéia.
A notícia da morte de Meleagro correu como o vento por todo o reino. Tomada pelo
remorso, com o semblante alterado, Altéia correu para seus aposentos e enterrou uma longa
adaga no coração. Antes mesmo de expirar, Altéia já estava morta.

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