O nascimento de Minerva

141 2 0
                                    

– Júpiter, preciso muito lhe falar – disse um dia a Terra, sua avó.
A velha deusa, que engendrara Saturno, o pai devorador de filhos, tivera um sonho
profético no qual a antiga e violenta maldição familiar de filhos destronarem os pais
ameaçava recomeçar.
– Agora será com você, Júpiter, que a história vai se repetir! – disse a Terra,
perfurando as nuvens com sua bengala de pedra.
Na mente da deusa passou, como num relâmpago, todo o seu tormentoso passado com o
brutal Céu, que a obrigara a esconder em seu ventre todos os filhos gerados por ele. Depois
enxergou seu filho Saturno chegando em casa com a foice ensangüentada e o ar aliviado do
jovem que triunfa, afinal, sobre a tirania decrépita dos pais. “Seu odioso marido está mutilado
e o poder agora é todo meu!”, dissera o jovem deus, ao destronar o próprio pai.
– Não diga tolices, minha vó! – bradou o pai dos deuses, despertando a Terra de seu
devaneio. – Quem se atreverá a levantar mão ímpia contra o soberano do mundo?
A velha deusa sorriu. Fora esta mesma frase que Saturno envelhecido repetira, um
pouco antes de seu próprio filho Júpiter expulsá-lo do trono, tornando-se o novo e supremo
mandatário do Universo. Júpiter, entretanto, era muito jovem e estava mais preocupado em
conquistar o coração da sua amada Métis, a deusa da Prudência.
– Não se case com ela – advertiu a Terra, com severidade –, pois de seu ventre sairá
aquele que trará a sua ruína.
– A deusa meiga e de olhos mansos como a corça será capaz, então, de gerar um tal
monstro? – disse Júpiter, alisando sua negra e ainda curta barba.
– Sim, seu tonto, a meiga e de olhos mansos como a corça! – bradou a Terra, cujas
palavras, com a idade, iam perdendo o mel da paciência. – Na verdade serão dois filhos; o
primeiro será uma mulher, a mais justa e sensata das deusas, que só lhe trará alegria e motivo
de orgulho...
Júpiter sentiu um alívio percorrer suas divinas entranhas.
– ... mas cuidado com o segundo! – prosseguiu a deusa. – Ele será o flagelo de sua
existência. Muito mais insubmisso do que seu pai ou você próprio, ele o destronará
sangrentamente, tomando o seu lugar para todo o sempre. E com o filho dele acontecerá o
mesmo, e assim por diante, até que alguém decida pôr um fim a esta orgia de parricídios.
Durante um longo tempo os dois estiveram em silêncio. De vez em quando Júpiter
erguia os olhos para a avó, que permanecia parada à sua frente, apoiada ao seu cajado; em
seus olhos inflamados pela profecia brilhava ainda, com a mesma intensidade, a luz ofuscante
da determinação.
– Está bem, vovó – disse, afinal, o pai dos olímpicos –, você venceu. Vou falar com a
adorável Métis.
No mesmo dia Júpiter dirigiu-se à morada da deusa, que ficava no fundo do oceano.
– Adorável Métis, meiga e de olhos mans... – disse Júpiter, interrompendo-se.
– Oh, é você, meu querido Júpiter! – exclamou a deusa, caindo em seus braços. –
Estava morta de saudades...
“Tão meiga e tão feminil ao mesmo tempo!”, pensava, enquanto deslizava os dedos
pelas curvas simetricamente perfeitas das costas da encantadora Métis.
Num instante estavam ambos sobre o leito. Júpiter, esquecido das advertências de sua
avó, passou o resto do dia nos braços da divina amada, descobrindo a cada instante, em seu
corpo, novos e insuspeitados mistérios.
Ao final do dia, entretanto, ela voltou-se para ele e disse:
– Júpiter, regozije-se: estou grávida!
– Grávida?! – exclamou o deus olímpico.
– Sim, seremos ambos pais de uma bela menina!
Júpiter ficou paralisado por alguns instantes. De repente, porém, como quem toma uma
súbita decisão, tomou-a nos braços e disse, num tom enigmático:
– Está enganada: ambos seremos mães.
Nem bem dissera isto, Júpiter abriu desmesuradamente a boca – onde ele vira isto
antes? – e engoliu a pobre Métis!
– Pronto, minha amada – exclamou ele. – Agora estamos unidos para sempre.
Imediatamente o deus retornou para junto da avó, como obediente neto que era, e lhe
comunicou, cheio de orgulho:
– Minha vó, acabei de comer a formosa Métis!
– Menino sujo! – gritou a velha, dando uma bastonada em sua cabeça.
Custou um pouco, mas afinal Júpiter conseguiu fazer a velha entender o que quisera
dizer e acabou mesmo elogiado por ela.
Os dias passaram e as apreensões foram se desvanecendo, até que, certa manhã, Júpiter
acordou com uma terrível dor de cabeça.
– Céus, o que é isto em minha cabeça? – gritava.
Todos os deuses acorreram para ver que gritos eram aqueles.
O deus dos deuses gemia, enquanto os demais se agitavam em torno.
– Sua cabeça cresceu assustadoramente! – disse Mercúrio, espantado.
– É da ambrosia... Eu disse pra não abusar! – gritava, aflita, a sua mãe, Cibele.
– Calem a boca, todos, e chamem Vulcano – gritou Júpiter, com as duas mãos postas na
cabeça.
Dali a instantes surgiu o deus das forjas, coberto de fuligem.
– O que houve, meu divino pai?
– Tenho algo dentro da cabeça! Descubra o que é – exclamou Júpiter.
– Sim, de fato, parece haver algo muito grande dentro dela... – respondeu Vulcano,
espantado com o gigantesco tamanho da cabeça de seu genitor. – O que será?
– Mas foi o que lhe perguntei! – respondeu Júpiter, colérico. – Vamos, pegue suas
ferramentas, abra minha cabeça e retire logo daí de dentro seja lá o que for que esteja me
atormentando!
Vulcano abriu seu maravilhoso estojo. Dentro dele, em pequenos compartimentos,
estavam dispostas em perfeita simetria as suas extraordinárias e eficientes ferramentas.
– Hm... Martelo, broca, chave, pé-de-cabra... Calma, meu pai, que a coisa já vai!
O deus dos artífices encontrou, afinal, o seu melhor martelo e avançou destemidamente
para o pai.
Um calafrio de horror percorreu os nervos e tendões de Júpiter. “E se a velha Terra
estiver senil, e for ele, afinal, o filho que me tirará o cetro?”, pensou Júpiter de olhos
arregalados ao ver avançar o filho imundo, com aspecto de demônio, balançando o martelo
gigantesco, como para lhe tomar o peso.
– Este não falha, meu divino pai! – disse Vulcano, arreganhando seus quatro negros
dentes, e vibrou o martelo ao primeiro golpe.
O pobre Júpiter sentiu o mundo rodar.
Vibrou o martelo ao segundo golpe.
Uma rachadura surgiu de alto a baixo em sua cabeça.
– Só mais uma, pai! – disse Vulcano, respirando fundo e erguendo o martelo o mais alto
que pôde.
PÁ!, vibrou o martelo ao terceiro golpe.
Um jato de luz ofuscante escapou pela rachadura, fazendo com que os deuses corressem
para todos os lados. De dentro da cabeça de Júpiter surgiu, então, uma outra cabeça, revestida
com um magnífico capacete dourado.
Um grito de espanto varreu o Olimpo inteiro.
Logo em seguida surgiu o resto do corpo da criatura – uma mulher, vestida inteira, dos
pés à cabeça, com uma reluzente armadura. Todos os deuses estavam boquiabertos, e até
Apolo, que conduzia no alto o seu flamejante carro do sol, parou por um instante para
observar aquele fantástico prodígio.
A mulher saltou para o chão e deu um grito de guerra, o mais alto que o Olimpo já havia
escutado. Depois pôs-se a executar, de maneira absolutamente perfeita e graciosa, os passos
do mais estranho e original peã que os olhos humanos e divinos já haviam contemplado.
– Honra e Paz para você, divino pai e senhor absoluto do Universo! – disse a criatura,
após encerrar a sua magnífica dança marcial. – Sou Minerva, sua filha, gerada de seu sêmen
para cumprir as suas ordens.
Júpiter ficou encantado com a nova deusa que surgia – parida por ele próprio! – e com
suas filiais e piedosas palavras.
Assim que veio ao mundo a mais útil e benemérita das divindades: Minerva, deusa da sabedoria, do trabalho e das artes. E quanto às negras previsões da velha Terra, que ameaçavam Júpiter com a chegada de um segundo e destruidor filho, deram, felizmente, em
nada.
Júpiter ousou então debochar da anciã:
– Minha vó, suas profecias são furadas!
– Imbecil, furada é sua cabeça-de-vento! – disse a velhinha, que nada tinha de caduca. –
Bem se vê que fugiu o resto de sabedoria que havia na cachola.
E depois de assestar uma bela pancada na cabeça do neto, completou: – Pois honre a mim, então, que sou a única divindade competente o bastante para fazer reverter uma funesta profecia.

 Onde histórias criam vida. Descubra agora