O castigo de Quelone

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O Olimpo estava em festa: Júpiter e Juno iriam finalmente se casar.
As duas imensas portas do Empíreo, algodoadas de nuvens, haviam sido abertas de par
em par pelas três Horas – Eunomia, Dice e Irene –, que faziam o papel de anfitriãs. Atrás
delas podia-se divisar perfeitamente o brilho feérico e resplandecente do palácio dourado
onde iria se realizar a tremenda festa.
Os convidados iam chegando em grande número, atravessando a ponte multicolorida do
imenso arco-íris.
– Vejam, irmãs – disse Eunomia, radiante –, quantos convidados! Estejamos atentas
para que não nos escape presença alguma.
– E nenhuma ausência, também! – disse Dice, cuja tarefa era ir riscando os nomes dos
convidados que chegavam.
Os principais deuses do panteão olímpico iam chegando, sozinhos ou aos pares,
conversando alegremente. Ceres, vestida com uma túnica drapejada e esvoaçante, surgiu, entre
tantas outras divindades, toda sorridente.
– Nossa! – disse Irene, a porteira esbelta. – Ela caprichou mesmo!
Junto dela estava Minerva, a deusa da sabedoria.
– Sempre recatada, mas também sempre encantadora! – comentou Eunomia, afastando-
se um pouco para permitir a sua passagem.
Apolo e sua irmã Diana vinham abraçados, dando uma gostosa gargalhada. Do que riam
tanto?
Os grupos foram passando um a um até que chegou o casal mais curioso: a maravilhosa
Vênus e seu truculento esposo Vulcano.
– Vejam só, será que finalmente ele resolveu tomar um banho? – cochichou Irene à sua
irmã Dice, que ocultou no véu um sorriso discreto.
De fato, o deus das forjas, normalmente coberto de fuligem, naquele dia surgira diante
de todos um pouco mais apresentável, apesar de toda a sua feiúra. Seus cabelos emaranhados
pareciam ter sidos apresentados finalmente a uma escova, e algo parecido com uma esponja
parecia ter sido esfregado sobre o pêlo espesso do peito e dos membros.
Quase todos os convidados já haviam chegado, inclusive Netuno, com sua corte
aquática, úmida e festiva, e o sombrio cortejo de Plutão, que trazia pelo braço sua esposa
Prosérpina, pálida como sempre, porém um pouco mais animada.
De repente, porém, Eunomia, que passava em revista com suas irmãs a enorme lista
com os nomes riscados, escutou uma voz soar bem ao seu lado.
– Porteiras do Olimpo, como estão?
Era Mercúrio, o deus dos pés ligeiros.
– Ótimas! – respondeu Irene, pelas três. – Acho que não falta mais ninguém, e você deve ser o último.
Na verdade Mercúrio fora o encarregado de levar os convites do casamento a todos os
recantos do Universo. Finalmente, retornava de sua trabalhosa missão.
– Não, esperem! – gritou Eunomia, colando o alvo dedo sobre um nome da lista.
Os rostos das duas irmãs, mais o de Mercúrio, voltaram-se atônitos para ela.
– Como? Ainda falta alguém? – perguntou o deus mensageiro.
– Sim, a ninfa Quelone! – exclamou Eunomia. – Alguém a viu passar? – Não, ninguém a
vira passar.
– O que terá acontecido? – disseram as Horas numa só voz.
Mercúrio apertou um pouco mais as suas sandálias aladas e desapareceu como um pé
de vento pela estrada colorida, deixando somente a sua voz:
– Vou refazer o trajeto até sua casa e ver o que houve!
O filho de Júpiter percorreu grande parte da estrada, e quanto mais avançava, mais
temia pelo atraso – ou mesmo pela ausência definitiva da ninfa Quelone.
“Por Júpiter, se Juno descobre que ela ignorou sua festa, a matará!”, pensava o deus
mensageiro, enquanto apertava o pétaso para que não voasse de sua cabeça.
Quelone, entretanto, ainda estava descansada em sua casa, à beira do rio.
– Que calor! – disse ela, espreguiçando-se. – Essa tal de Juno, também, pensa que eu
sou o quê, para me largar desta distância toda até a sua casa? Só para ir lhe bajular?
A vontade de ir para a festa de casamento de Juno era nenhuma. Na verdade não tinha
vontade de fazer nada. Sim, porque apesar de ser uma ninfa adorável, era também a mais
preguiçosa das criaturas. “Miseravelmente preguiçosa”, como lhe dissera um dia um fauno das
redondezas.
Por diversas vezes Quelone ensaiara a sua ida ao casamento. Na verdade, passara a
manhã toda indecisa: que roupa usaria, afinal? Mais vaporosa ou mais discreta? Isto
implicava uma escolha – e escolher era tão cansativo! E o maldito penteado, solto ou preso?
Pintaria ou não as suas compridas unhas? Ai! Dez unhas nas mãos e mais dez lá nos pés! E a
que horas deveria sair? Um pouco mais cedo ou bem mais tarde?
Afinal de contas, deveria mesmo ir?
Cogitando e refrescando os pés na água, a ninfa deixava o tempo passar.
– Acho que agora não dá mais tempo... – pensou, ao observar o sol lá no alto.
De repente, Mercúrio tapou o sol. Quelone, já de olhos fechados, murmurou:
– Ih, agora é que não vai dar para ir mesmo... Lá vem chuva!
– Sua preguiçosa, eu já imaginava! – disse o deus, pousando ao seu lado.
Quelone levantou-se, de susto.
– Ah, é você? – disse ela, com a mão em pala sobre os olhos. – Sempre correndo pra
cima e pra baixo, não é?
– Voando, querida, voando! – respondeu Mercúrio, passando uma água no rosto.
Humpf! – fez Quelone, esgotada, fechando os olhos outra vez.
– Vamos, levante-se, preguiçosa! Está quase na hora das bodas de Juno.
– Não posso – disse Quelone. – Acordei com o pé machucado.
– O lençol o esmagou? – perguntou Mercúrio, com um tom de mofa.
– Ai, é verdade – disse a ninfa, colocando-se em pé com fingida dificuldade.
Mas o deus não estava para lorotas e, em dois tempos, colocou-a no rumo da estrada.
Mas a ninfa teimava em atrasar o seu passo: ora parava para descansar, ora simulava uma
insolação. As horas passavam, e Mercúrio, aflito, sentia que daquele jeito jamais chegariam.
– Bem, adeus, vou indo na frente, senão Juno também me matará! – disse o deus,
perdendo de vez a paciência.
– Isto, vá logo, apressadinho! – disse Quelone, sentando numa pedra azulada, bem no
começo da longa estrada do arco-íris que levava até o palácio de Júpiter. – “Por que não me
levou nos braços, então, se estava com tanta pressa?”, perguntou-se, mal-humorada. “Depois a
preguiçosa sou eu!”
Quelone adormeceu bem na entrada do arco-íris. Quando acordou novamente, a
magnífica festa já havia acabado. Grupos alegres já voltavam, cruzando por ela.
– Que festa, hein? – dizia um fauno, todo descabelado.
– Esta, sim, valeu a pena! – dizia uma nereida, que parecia ter abusado um pouco do
vinho.
Deuses, ninfas, faunos, todos esbarravam em Quelone, que era a única a seguir em
sentido contrário.
– Esqueceu algo, querida? – perguntou-lhe Dóris, esposa de Nereu.
– Não me amole – replicou Quelone.
Apesar da festa já haver acabado, ela ainda tentava avançar, nem que fosse para se
explicar com a nova rainha do céu.
– “Rainha do Céu!” – tripudiou a ninfa. – “Ai, Rainha do Céu, desculpe o atraso!”
“Tudo bem, Rainha do Céu?” “Quem diria, hein: Rainha do Céu!” Quer saber de uma coisa?
Vou é voltar já para casa!
E voltou mesmo. Um pouquinho mais rápida, desta vez.
Quando chegou lá, jogou-se em seu leito, exausta. Mas Mercúrio a aguardava.
– Você não foi até lá, então? – disse o deus, com o cenho franzido.
– Não incomoda, pé-de-vento! – resmungou a ninfa, cobrindo o rosto. – Diz lá pra
Rainha do Céu que um dia desses apareço para dar os parabéns.
Mercúrio, perdendo definitivamente a paciência, pegou-a pelos pés e arrojou-a dentro
do lago. Em seguida lançou também a própria casa da ninfa em cima dela.
– Aí está! – disse o deus, dando as costas e indo embora.
A pobre Quelone ressurgiu instantes depois das profundezas do lago. Seu rosto estava
mudado, e era como o de um enrugado lagarto. Tinha agora quatro pernas – quatro pernas
imensas – e em cima de suas costas pesava a sua antiga casa, virada numa imensa e pesada
carapaça. E Quelone nunca fora tão lenta como agora!
Assim a ninfa que faltou à cerimônia de casamento do grande Júpiter e da poderosa
Juno foi transformada no animal hoje conhecido como tartaruga.

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