CHUCRUTES E PIANOS

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Quando você tem muita informação, geralmente sai desinformado. O importante são sempre os detalhes. Deus está nos detalhes. E são essas pegadinhas divinas que eu tenho que seguir nesse monte empoeirado de papel que por fim é o que define a vida inteira de uma criatura. No final não somos nada, apenas um punhado de história e um monte de dados em uma pasta de obituário. O velho Cavendish não está muito obstante disso. Números, registros, certidões e certificados um mar prolixo de desinformação, contudo eu só preciso da marola.

Ele era alemão, nascido em Berlim bem antes da guerra. Até a coisa ficar feia lá pela terra dele, foi ourives, mas acabou tendo que se alistar. Em suma, nasceu em uma tarde de Janeiro lá por 1920 e era nazista, o que explica aquela atitude altiva escrota dele. Era capricorniano.

A ficha básica ainda não mata ele aos 80, nazista é pesado mas se tivessem que matar o velho por isso ele já tinha virado adubo a muito. Até porque um pouco antes do final da guerra ele se desvencilhou dos chucrutes de algum jeito. Abriu uma importadora de teclas de piano, negócio que devia dar dinheiro na época, afinal ele veio com esse ramo para cá, comprou meia cidade e abriu a fábrica de sapatos. Uma troca interessante de atividades, mas aqueles eram dias loucos, vai entender o mercado.

O velho Irene me separou umas cópias de escrituras da época, o que só corroborou com a minha teoria da lucratividade dos pianos em 45, Cavendish comprou praticamente a cidade inteira a vista. De ponta a ponta deste lugar esquecido por Deus, ele comprou algo. Fábricas, lojas e várias casas que ele cedeu para os Funcionários. Resumindo, um nazista enriqueceu misteriosamente no meio da guerra. Suspeito, mas isso não é problema meu, até porque preciso saber o que matou o corôa e dessa ele parece ter saído sem um arranhão e muito bem obrigado. Sendo assim procurei me aprofundar, me permear no assunto que realmente mata e seca, naquilo que pode destruir com a vida de um homem.

Casamentos.

Nosso amigo era um viúvo alegre. Enterrou quatro esposas ao longo da vida e nenhuma delas conseguiu tirar suco do velho. Nenhum filho ou pedido de teste para paternidade. Nada! Nenhum herdeiro vivo ou parente respirando para ver alguma vantagem no sapateiro abotoar o paletó de madeira. Definitivamente se fosse fácil o paspalhões da 31° tinham resolvido isso tudo. Está cada vez mais notório que livrar a raba da Alma não vai ser mole.

Continuei esfuchinhando a papelada e eu que estava achando a vida pessoal do velho sacal, na profissional quase dormi. Nenhum processo trabalhista, nem um pequenininho de hora extra não paga, aquele assédio maroto na secretária ou sequer da família do cara que caiu na prensa e virou sola. Nem um único funcionário colocou o chucrute no pau. Sócios também não teve, praticamente todo mundo que abriu a fábrica com ele se aposentou por lá mesmo.

Esse velho está me saindo tão limpo que está me dando nojo, quase botei meus bofes pela boca quando descobri que ele mesmo fazia o Papai Noel na festa de final de ano da fábrica e dava presente para as crianças da cidade, cara, que sujeito estranho. As horas me pesaram, junto com litros do bom conhaque do Irene. Em certo momento morpheus me deu aquela trombada. O cheiro de café se mutou no perfume da Alma, pude ver ela se debruçando no balcão de madeira usando apenas algo feito com pouca, bem pouca seda vermelha. Caminhou até a minha mesa, jogou os papéis no tapete se aproximou e eu pude ver cada pelo daquele corpo marmorizado riscando a seda como centenas de pincéis que pintavam meu desejo, a ponta das unhas carmim riscando lentamente meu pescoço, a palma quente tocando minha pele, meu rosto sendo puxado e minha testa estalada na mesa. Que maneira detestável de se acordar de um sonho desses.

Quando percebi um dia ruidoso já se apresentava nas janelas da cabana, o Sol já vinha escorregando pelas brechas e alaranjado tudo o que tocava. Eu tinha acabado com uma porcentagem interessante do estoque de conhaque de inverno do Irene, o mesmo cansou de me ver batendo com as fuças nas letras e dormia profundamente na rede da varanda. Seu sono era um revezamento de tapas em moscas pelo rosto e longas cofiadas em seus bigodes.

Guardando minha pesquisa e murmúrios estava a figura serena do velho Irene adormecido em seus leves balanços, que lentamente forçavam as argolas de metal que sustentavam no ar meu protetor em sua rede cafona verde e vermelha, que com o seu ranger metálico cantavam de forma hipnótica uma repetida canção ferruginosa, que misturada aos odores de café mentolado e carvalho polido me ajudaram a colocar as ideias no lugar. Definitivamente precisava pisar nos últimos passos do velho e do seu assassino. Eu necessitava visitar o local do ocaso de Cavendish, eu e minha garrafa vamos visitar Alma.

A necessidade fez o ladrão, me vesti de furtividade e como uma brisa me esgueirei pela cabana reuni algumas pastas, peguei a bendita garrafa que a Glória me deu por assim dizer, achei as chaves do velho rabo de peixe azul celeste do Irene e finalmente me pus na estrada para a perdição. E pelos meus filhinhos perdidos eu vou estar morto quando o matuto da cabana descobrir que eu botei as patas no possante dele. Mas como a necessidade manda...

O dia já firme me deu a liberdade de abrir a capota para sentir o vento no rosto enquanto dirigia e namorava o reflexo das árvores se deitando no espelhado capô anil a minha frente, a boa música da rádio e aquele couro branco dos bancos que parecia me acariciar os glúteos de uma forma quase sexual conseguiram me relaxar durante o longínquo caminho para a mansão Cavendish, que por si eram duas viagens. Pois quando cheguei aos portões da propriedade ainda perdi quarenta minutos da minha vida dirigindo até a mansão propriamente dita, foi quando me assustei de forma profunda e em fato realmente vi algo que não esperava.

Nunca tinha visto algo tão assustador. Na frente da escadaria principal da mansão todos os funcionários formavam um tipo de corredor, pareciam me aguardar, e nenhum deles estava apontando qualquer tipo de arma para mim, acho que essa foi a primeira vez que isso me aconteceu. Um sujeito todo engomado veio até a minha porta a abriu, tomou de mim meu casaco e chapéu e em seguida me entregou uma generosa taça de Bourbon, achei uma troca justa visto que aquele sobretudo eu tinha trocado com um mendigo por um sanduíche que havia pego de um cego na praça.

Após passar por todos os funcionários perfilados me deparei com a escadaria sombria da pavorosa mansão gótica de, um suntuoso palacete no melhor estilo europeu, que me apavorava desde que eu era uma criança e vinha aqui com minha mãe entregar as toalhas bordadas que ela vendia. Nunca gostei desse desperdício de pedras, as janelas sempre abertas me davam a impressão que as cortinas que tremulavam para dentro e fora do lugar estavam respirando como se a casa fosse uma enorme criatura adormecida.

Definitivamente não gosto do lugar e por dentro as coisas não ficam melhores, não faço ideia do que está rolando, nem do que vai acontecer nesse mausoléu, sei menos ainda onde está Alma, o perfume dela já me assombra. Definitivamente odeio dias ensolarados que já começam me surpreendendo.

 Definitivamente odeio dias ensolarados que já começam me surpreendendo

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Olá.

Espero que estejam gostando tanto de ler, quanto estou gostando de escrever os dissabores dos casos cabulosos do detetive Rick.

Não esqueçam de comentar, se gostaram e só ir lá na estrelinha e favoritar, para ficar sempre por dentro das novidades é só ir lá em seguir e colocar o livro lá na sua biblioteca para você ler sempre que sentir saudades da Alma.

E toda semana um capítulo novo acinzentando a sua vida.

Marfim NegroWhere stories live. Discover now