Bordô, Carmim, Vinho, Vermelho.
A dor colore uma gama de diversos tons, onde olhos esbugalham secos e orelhas explodem em gritos surdos. Dói, e não há sequer metafóra viva ou morta que dê o formato exato da largura que é o canal de onde fluí a dor.
Inunda, iniciando em breves gotas tremelicadas em tintilares agudos até que se expanda ao pingar de um chuveiro velho. Entorna, goteja, até tornar-se o chiar da cachoeira gélida, esticada ao máximo em sua pressão. E logo vem as ondas, gigantes monstros molhados afogando os que não tem um nado hábil.
E tem Maria. Das Dores.
Maria não descreveria sua dor como mares ou rios. Ela diria caixa d'água vazia.
É verão, as roupas acumulam no pequeno cesto furado. Crianças de pé sujo e cabelos desgrenhados, arroz sem água para cozer, dentes sem escovar e o suor, que pinga e escorre, colando o tricoline dos shorts no corpo, pinicando até mesmo a alma.
Grace Kelly grita, esperneia do alto da escada, segurando metade de seus cabelos cacheados com um pente largo, chorando pelo pentear seco e dolorido. Marcelo, o mais velho, raspa o fundo da caixa em busca de um mísero fio de água para lavar as axilas para a labuta.
Reclamações de verão. Som de bar em repetições eternas sobre beijos melados e suor.
Mãe, mãe, mãe...
Sim, Dona Dores sente a falta como caixa sem água, nadando no vazio sem subterfúgios ou rotas.
O enterro era simples, o que cabia no orçamento. A vizinha ajudou. Conhecia alguém que conhecia alguém que trabalhava na floricultura local. Seria de bom tom que Almir estivesse lá também, afinal, Miguel não havia sido feito somente por ela. Mas Almir não poderia.
Claro que não, ele nunca pode.
Não esteve lá quando o moleque andou pela primeira vez, patinando em suas meias azuis, caindo e se erguendo nas mãozinhas rechonchudas até se levantar novamente. Não esteve quando Miguel se envolveu em uma briga de colégio por um mísero estalinho e sequer no esporro e tapas que Maria o deu.
Ah, e claro, Almir também não compareceu na delegacia para tirar o filho de lá quando ele foi autuado por desacato a autoridade.
Curioso, Miguel sequer falava oitavas além do dó.
Madrugada, o adolescente voltava do pagode da suave madureira. Polícia para o ônibus, só desceu quem fazia "o perfil." Certamente, só os pretos de cabelo cortado na dois e uma linha lateral na zero.
Miguel era um deles. Pacato, silencioso, deixou-se revistar. Protocolo de segurança que Maria o ensinou desde os oito anos.
Nunca questionar. Nunca gritar. Mantenha as mãos visíveis. Diga sempre qualquer movimento que vá fazer. Não chore. Não demonstre desespero. Fale baixo. Mostre a identidade. Nunca questionar.
Não são todos ruins, mas alguns serão.
Você é especial, filho.
Miguel seguiu, perfeito. O policial que o revistou era bom, sorriu amarelo em tom de desculpa, o revistou nas coxas, cintura, bolsos e o liberou.
Mas Marcelo... Marcelo não seguiu o protocolo. E que azar, o policial não era dos bons.
O homem pressionou, distribuíndo comentários racistas em meio a revista, como amostra grátis em porta de perfumaria. Bandido, ele dizia. Esses celular aqui, concerteza não é seu seu merda, ele gritava. Ecoando duro dentro da cabeça de Marcelo até fervê-la.
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Prisma Eu
Fiksi UmumSempre há três visões da mesma história: A verdade, a deles e os fatos. Complexo, as faixadas em tijolos crus não escondem a mancha do ricochetear das balas. O sangue pobre, do preto, esticado sobre o cinza do chão. A mídia conta, a mãe sussurra e a...