Era apenas um dia normal, como os outros. Estava quente como um dia de dezembro deve ser, movimentado como os dias próximos ao Natal costumam ser. E a grande cidade não para nunca, com suas pessoas e carros apressados pela rua, como o sangue que circula em nossas veias, não podendo parar por nada. Nem por ninguém.
Algumas vezes um som diferente do normal chama a atenção dos passantes. Uma freada mais brusca. O som seco de uma pancada. Alguns gritos. E está um homem deitado no asfalto. Ninguém sabe o que aconteceu, ninguém viu nada, ninguém prestou a atenção em nada. As pessoas veem tudo, mas não observam nada, ninguém. Nem mesmo o cara que dirigia o carro, nem mesmo o cara que agora jaz no asfalto quente.
Alguns param, outros diminuem a velocidade para observar. A maioria passa como se nada tivesse acontecido, pois coisas assim acontecem todos os dias na grande cidade. A grande cidade que não pode parar nunca.
Mãos à cabeça, gritos de espanto, lamentações por aquele que ninguém conhece. "coitado", "que triste", "será que está bem?". Não estava, não era preciso ser médico para perceber que ele não se movia e que, lentamente, a roda vermelho escura aumentava em torno de sua cabeça, tal qual uma gigante aura, ou uma macabra auréola.
Todos olham, mas ninguém faz nada. O trânsito para e as buzinas começam, pois a grande cidade não pode parar, nem mesmo em momentos como estes. Logo as buzinas são encobertas pelas sirenes. Um carro vermelho para no meio da rua e descem três pessoas. Um tenta colocar ordem no trânsito e dois vão olhar o coitado.
Após alguns momentos, viram o rapaz. Gritos abafados e lamentações dos que estão em volta. Por debaixo da grande mancha vermelha é possível ver que ele é jovem, alguma coisa por volta de 30 anos. Roupas simples, porém bem arrumadas. Ele com certeza estava indo para algum lugar, ou voltando de algum lugar. Bem, todos nós estamos indo ou voltando de algum lugar, é a nossa natureza, é a nossa vida. Ir ou voltar. Nunca estar.
Vasculhando seus bolsos a procura de alguma identificação, encontraram uma velha carteira. Identidade, um bilhete de metro e uma nota de dez reais. Nenhuma foto de parente, nenhum recado, nada. Em outro bolso, um celular daqueles chineses, completamente espatifado com a queda.
E, no bolso de trás, uma cartinha. Uma cartinha de Natal, daquelas que você pega nos Correios, para crianças carentes. Uma cartinha de uma criança de três anos, que pediu de Natal uma camiseta, um tênis e uma cueca. Uma cartinha de uma criança que, agora, vai ficar mais um Natal sem receber a visita do Papai Noel, pois o seu Papai Noel se encontra dentro de um saco preto, no meio da rua.
K&
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SEM O SENTIDO DA VIDA
Short StoryOito contos diversos retratando situações reais - e muitas vezes amargas - do nosso cotidiano FELIZ NATAL LÁGRIMAS SUJAS SEM CHANCES 11 SORRISOS AMARELOS E OLHOS VERMELHOS A REDENÇÃO O TAL LADO NEGRO DA FORÇA METRÔ QUAL É O MEU PREÇO?