Cross Faded

378 22 5
                                    

- Você quer me dizer que vai sair hoje? - Irene, minha mãe, perguntou, enquanto mexia uma panela de chilli. Confirmei com a cabeça e sentei em um dos bancos da copa, enfiando alguns nachos na boca e mastigando.
- Eu precisei te buscar em uma delegacia hoje cedo e agora você quer me dizer que vai procurar mais problemas na rua?

Reviro meus olhos e afasto os nachos com minhas mãos. Se decisões tomadas pudessem matar alguém, eu tenho certeza de que eu estaria a sete palmos do chão agora.

Dez horas atrás, eu não estava aqui, em minha bela e confortável casa em Atlanta. Eu estava em uma delegacia, entretida como nunca, com o cheiro de papéis, de café, de medo e de estresse, tão forte e penetrante no ambiente. O delegado conversava e falava e tentava me explicar, mas um preso com várias tatuagens e cabelo vermelho me chamava muito mais a atenção naquele momento.

- Senhorita Westland, você está prestando atenção? - o homem grisalho perguntou, e eu olhei fundo nos seus olhos. Seu bigode vistoso estava sujo de chantilly, e eu juro que precisei de muito esforço para não parecer uma criança rindo daquela situação que não conseguia me deixar nem um pouco séria.
- No que?
- Você entende que quase foi presa, Lai? - minha mãe questionou, seus fios acobreados bagunçados e enrolados entre seus dedos finos e longos. Sua testa estava lotada de vincos, e seus ombros ossudos e lotados de sardas fizeram-me ver que eu e ela éramos parecidas como irmãs.
- Não fui eu quem fiz algo errado. Eu estava defendendo uma amiga de um ataque de uma pessoa ruim. Ela merece ser presa, não eu.
- O senhor Hüstner está em um hospital agora pois você quebrou uma cadeira de madeira em suas costas. Você entende a gravidade dos seus atos, senhorita Westland? Hoje, você só tem dezesseis anos, mas um dia, você será mais velha e não terá uma mãe para buscar você em uma delegacia quando você cometer algum crime. Vocês estão dispensadas, mas saiba que hoje é a primeira vez e eu espero que seja a última. Eu não vou ser tolerante com você da próxima, e eu espero que mais ninguém seja.

- Você sabe que isso já passou. Eu nunca te causei problemas antes, e não é agora que eu os causarei.
- Você é cada dia mais parecida com Gia Dahn. Eu não consigo acreditar que todos os meus esforços nos últimos seis anos tem valido de tão pouco.
- Eu não sou uma delinquente, Irene. Eu estou fazendo o meu melhor. E não fale de Dahn como se ele fosse um marginal ou alguém ruim. Ele tomou decisões, só isso.
- E largar sua filha e sua esposa sozinhas e partir para o Vietnã é algo louvável?
- Não. Não é - respondo, os olhos baixos. Suspiro e olho para minhas mãos, onde está em uma delas um anel com uma pedra esverdeada. Este foi o último presente que meu pai me deixou  quando voltou para seu país natal sem uma única explicação e sem nunca mais voltar. Desde então, algo tem faltado em minha vida, e nada consegue suprir a falta que ele faz para mim. Uma família estruturada era tudo o que eu queria, mas não tive. Tudo o que me resta é sentir falta e seguir em frente, a duros passos.

- Com quem vai?
- Martha. Ela vai me trazer de carro, não precisa se preocupar. E eu também não sei que horas volto.
- Certo. Eu deixo a porta encostada. Escute-me, - ela pede e eu a olho, fundo em seus olhos escuros que só diferem dos meus em formato, os meus sendo pequenos e esticados e os dela sendo grandes e amendoados - eu não quero que você cause mais confusões. Se você for presa outra vez, eu não vou ligar. Você é madura o suficiente para compreender o que faz, ou pelo menos deveria ser. E se eu estou dizendo isso, é porque me preocupo. Está bem?
- Sim, Irene, está tudo bem.
- Não te mataria me chamar de mãe de vez em quando, sabia? - ela diz, os olhos carinhosos como os de um filhote e tão necessitados de uma palavra amiga como eu mesma me encontrava sempre.
- Eu te amo, mãe - digo, enfatizando a palavra, o que a faz sorrir em satisfação.
- Eu também te amo, Lai.

- Então, seu evento do dia de hoje foi quase ser presa, e então vir curtir em um bar com uma identidade falsa. Irene sabe disso? - Martha pergunta, entre risos e passadas de mão em seus cabelos longos e lisos.
- Não, – respondo-a – e se ela souber, eu estou fodida.
- Você teve a coragem de fazer aquilo com o senhor Hüstner?
- É claro que tive. Se nenhum professor em volta faz nada para impedir que coisas como aquela aconteçam, eu precisava ter feito algo.
- Você e esse seu complexo de super-heroína.
- Eu preciso proteger alguém.
- Por que você nunca foi protegida?
- Também.

addict. ;; pcyOnde histórias criam vida. Descubra agora