Extremamente Independentes

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- Deixa eu ver se entendi, você pode se transformar em qualquer material? - Estávamos sentados numa das mesas afastadas da biblioteca, conversando em meio a sussurros praticamente inaudíveis.
- Uhum. - Minha mão segurava a sua sob a mesa, escondida dos olhares do demais. Relacionamentos não eram apoiados de forma alguma dentro do Hospital, as alianças deviam ser puramente estratégicas. - Foi o que eles disseram.
- Isso é bem legal, na verdade. - Ela deu de ombros, como se não importasse. - Falo sério, Vick, não é um poder ruim.
- Têm dias que sou puro metal, não posso ser quebrada. - Ela me olha, querendo transmitir mais do que suas palavras podiam falar onde estávamos. - Mas não quando estou com você.
Meu coração falhou uma batida, fechei os olhos absorvendo suas palavras e segurando minha respiração para não fazer nada que nos delatasse.
- Você não pode falar esse tipo de coisa, sabe disso. - Resmunguei, tentando manter a compostura. Ter sua namorada ao seu lado, se declarando e não poder retribuir era a maior tortura que o Hospital poderia fazer contra mim. Eu via suas emoções, sentia elas apenas com seu olhar, mas meus poderes confirmavam o que ela dizia. Quando estávamos perto um do outro a atmosfera ao redor de si brilhava tanto que era quase impossível olhar, eu sabia quando ela estava pensando em mim mesmo quando não me via, pois nada no mundo chamava mais a atenção do que as cores que saíam dela depois que nos apaixonamos.
- Você me ama de verdade, nós temos tudo tendo um ao outro. - Continuou, apontando algo no livro a nossa frente, como se lesse um texto muito importante. - Não me deixe, Ian. Não se arrisque de novo. - Eu sabia do que ela falava. Nosso plano de fuga estava feito, mas para que se concretizasse eu estava fazendo algumas coisas durante a madrugada, ajustando os últimos detalhes. Não permiti que ela participasse, mas sabia que passava a noite angustiada e ficava assim até me ver pela manhã e ter certeza de que não tinha sido pego.
- Eu te amo cada dia mais, Victoria. - Confessei, franzindo a testa irritado. Pela minha expressão ninguém pensaria que eu me declarava, mas ainda assim era um risco gigantesco considerando que não sabíamos os poderes de todos que estavam na biblioteca naquele horário. Claro que a grande maioria não daria a mínima pra um romance proibido, boa parte deles estava em um também, mas não podíamos arriscar mais.
- Vamos fazer isso juntos então. - Ela fechou os olhos e eu sabia que estava imaginando como seria estar lá fora. - O vento no meu cabelo, não ter nada com o que se preocupar. - Suspirou. - Ian, fuja comigo. - Seus olhos nos meus, tão desesperados que me desesperaram.
- Vi, vamos sair daqui. - Prometi, virando a página do livro. Sua mão tocou a minha novamente.
- Você sente isso, certo? Consegue ver minha alma agora, não é? - Falou enfática, lembrando do que eu disse no dia que nos tornamos parceiros.
- Posso sentir até mesmo as batidas do seu coração. - Completei, não controlando o meu lábio que se curvou levemente em um sorriso. - Eu nunca quis nada tanto quanto quero que nossa fuga funcione.
- Não quer mais do que eu, tenha certeza. Por mim, faríamos isso agora mesmo. - Bufou irritada, virando uma página do seu livro também.
- Estamos quase, Vick. - Murmurei, encerrando o assunto. - Mais um pouco apenas.

{✓}

Foram dois anos nas ruas. Ian e Victoria tiveram bastante tempo para se adaptar e progredir, invadiam prédios e galpões abandonados para passarem a noite, não ficando mais que dois meses em cada lugar. O rapaz se passava por um charlatão, lendo emoções de pessoas nas ruas e ganhando dinheiro com isso, o bastante para que não precisassem roubar todos os dias.
Ainda não conseguiam viver apenas a partir de doações voluntárias, então acabavam furtando de lojas e casas. Depois de tanto tempo acabaram tornando-se profissionais nisso, mudavam-se de cidade sempre que podiam, mas sempre se mantinham próximos dos grandes centros. Não era a vida dos sonhos, mas quando lembravam de como era viver no Hospital tudo parecia valer a pena.
Victoria estava arrumando suas mochilas para que pudessem se mudar, seguiriam viagem para Curitiba. Já haviam passado pelo Sudeste do país e decidiram descer, em busca de mais oportunidades, além da maior distância possível do Hospital. Mais tarde talvez poderiam subir para o Nordeste, quem sabe atravessar a fronteira para Paraguai e ganhar a vida dessa forma? As opções eram infinitas, o futuro totalmente incerto. Ian entro com uma sacola de padaria, o cheiro bateu no estômago da garota com força.
- O que é isso? - Curiosa ela se aproximou do namorado, que escondeu a sacola nas costas com um sorriso.
- Um beijo pela resposta. - Brincou risonho. Ela se aproximou, pretendendo o enganar e sair com a sacola, mas quando o rapaz passou os braços pela sua cintura e a segurou contra si viu que era impossível recusar. Beijaram-se lentamente, mas foi o bastante para que Victoria sentisse suas pernas enfraquecerem. O poder de Ian sobre ela nada tinha a ver com sua capacidade de controlar emoções, coisa que aprendera no tempo fora do Hospital.
- Vai me mostrar o que tem aí? - Sussurrou, testas encostadas, olhos fechados.
- Feliz aniversário. - Estendeu à garota o pacote pardo, revelando um folhado ainda morno na embalagem. - Dois anos de idade.
No Hospital nunca comemoravam aniversários, eles sequer sabiam quando tinham nascido. Depois de terem fugido de lá, quando comemoravam seu primeiro Natal, decidiram que o aniversário de ambos seria no dia em que fugiram, 31 de Outubro. Agora, em 2006, eles comeram o doce sentados juntos no chão do galpão, a garota entre as pernas de Ian, recostada no seu peito. Depois de feita sua última refeição em  Maringá recolheram suas coisas, foram até a rodoviária e entraram no ônibus que os levaria até a capital do estado. A viagem levaria quase 8 horas, tempo suficiente para que dormissem mais confortavelmente do que suas noite no chão do galpão. A noite foi dividida em turnos, o rapaz ficando com o primeiro, pois apesar de estarem bastante longe do Hospital tinham se acostumado a ser cuidadosos. As frutas que tinham foram comidas durante a viagem, quando desembarcaram em Curitiba o tempo estava nublado e já era noite. Encontraram uma senhora que sentia-se sozinha e Ian conseguiu convence-la a dar abrigo aos dois para a noite. Manipular os sentimentos de alguém era errado e o garoto sentia-se muito culpado por usar da sua capacidade para o conforto dos dois, mas não podia deixar que Vick dormisse na rua no seu primeiro dia em uma nova cidade, ainda mais por ser seu aniversário. Eles já dormiram na rua antes, mas ao menos conheciam o lugar onde estavam, ali seria muito perigoso.
A senhora deixou os dois na sala onde deitaram no tapete abraçados, cobrindo-se com o edredom.
- Eu sonhei com você no ônibus. - Sussurrou Vick, olhando para ele em meio a penumbra.
- É? E como foi? - Ele acariciava o cabelo da garota, passando os olhos por seu rosto.
- Foi tão surreal. - Ela deitou sobre seu peito, fechando os olhos. - Tínhamos uma casa, como um casal normal. Na casa tinha quartos de verdade, cozinha com uma geladeira e um jardim. Você estava lendo no jardim e eu sentei do seu lado na grama e ficamos lá, sem medo de sermos pegos. - Respirou fundo. - Estávamos completamente seguros. - O coração do garoto apertava, sabendo que muito provavelmente nunca poderia dar isso à ela. Victoria merecia muito mais que uma fuga, tapetes de alguma sala, galpões vazios e viagens feitas às pressas. Ela merecia ter uma sala de jantar, fazer compras para um mês e adotar um cachorro. Uma das coisas que ele sabia que doía em Vick era que jamais poderia ter filhos.
O Hospital realizava a histerectomia em todas as garotas, evitando assim problemas como a menstruação, TPM e até mesmo gravidez. Eles sabiam dos riscos, mesmo proibindo o contato íntimo não eram estúpidos ao ponto de pensar que conseguiriam manter controle nas atividades sexuais dos seus pacientes e nem mesmo queriam. Existiam rumores de jovens que foram forçados a transarem, pois a equipe do Hospital acreditava que a libido reprimida estava afetando seus desempenhos. Era assustador ter toda sua vida controlada por eles e mesmo após fugirem do Louco doía lembrar que não importa quanto tempo passasse, sempre haveriam marcas do Hospital nas suas vidas.
- Vick, eu não posso te prometer que vamos ter uma casa e muito menos que não vamos sentir medo. - Suspirou, não querendo admitir que não era capaz de realizar todos seus sonhos. - Mas eu quero prometer que não vou parar de tentar.
- Eu sei que não vai, Ian. - Ela beijou seus lábios suavemente, encostando seus narizes um no outro. - Essa é uma das coisas que eu mais amo em você, não importa onde dormimos, o que comemos, você sempre faz com que eu me sinta a mulher mais sortuda do mundo. - Uma lágrima escorreu dos olhos do rapaz e ela secou com o polegar. - Nada vai mudar isso, eu tenho tudo que preciso tendo você aqui. - O beijo foi inevitável. Se amaram sobre o tapete, mesmo que brevemente, e dormiram novamente vestidos, abraçados mesmo quando trocaram de turnos. Quando o sol nasceu, antes que a senhora despertasse, os dois comeram, encheram suas mochilas e pegaram algum dinheiro que encontraram. Sabiam que estavam fazendo errado roubando de quem lhes deu abrigo, mas já faziam isso há tanto tempo que suas consciências ficavam em segundo plano.
A sobrevivência era o mais importante. Agora, numa cidade desconhecida, isso seria mais um novo desafio, mas eles dariam conta. Juntos.

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