Dentre todos os clichês da humanidade a minha vida até agora se resume basicamente em não perder a fé e a passar pela solidão. É uma luta diária e mato trinta leões por dia. De manhã o galo solta um cacarejo agudo e me diz que é hora de acordar, levanto e faço questão de abrir as cortinas de chita, eu adoro flores, abro as cortinas e o sol se abre pra mim e convido a luz pra entrar no meu quarto.
Ando pelo corredor, ainda zonzo por causa da sonolência, com uns feches de luz refletido através no vidro e um sono parece não querer ir embora... Fico indeciso se faço chá ou café, entre tempos acendo um cachimbo com um belo e fresco tabaco e dou bom dia com uma bela baforada olhando pro céu, decido fazer café e uma tapioca com um coco fresco que tinha acabado de comprar no dia anterior, no interior é assim, tudo fresco... "ah eu adoro essa simplicidade!"
Enquanto faço a minha refeição é inevitável não pensar nos planos que você fez pra o dia e me dá mal estar só de pensar que caminharei em direção à um lugar cheio de pessoas estúpidas e egoístas, me sinto contaminado. Olho pro relógio e estou atrasado, corro pro banheiro e tomo uma ducha bem quente, aproveito e limpo os restos do coco dos dentes, coloco o uniforme e deixo meu lar rezando um rezo que um preto velho me ensinou, (sim! Eu acredito em espíritos e tenho uma relação íntima com eles.)
Em meio a movimentação da cidade, que não é muito grande, percebo que as pessoas não olham e não cumprimentam as outras, está tudo escuro e estranho como se nada existe além da sua existência individual e me pego em outra reflexão (risos). Sigo em direção ao trabalho, está fazendo um sol de rachar, um calor insuportável, dentro do ônibus várias pessoas mortas de fadiga e insatisfação, poucas aparentam estar felizes e plenas, não me pergunte como eu estou porque eu não sei.
Finalmente chego na biblioteca, eu sou bibliotecário, ganho pouco, meu chefe pé no saco, e é quase um trabalho voluntário, é que o silêncio me encanta e aprecio cada segundo do meu tempo lendo livros e observando as pessoas que passam por lá e confesso que vai todo tipo de gente de mendigos a professores universitários.. eu adoro ver esse povo junto, tantas culturas, tantos rostos bonitos e tantos outros que não me apetecem, mas que são bem familiar pra mim, principalmente aqueles com semblantes mais tristes e deprimidos, sempre me procuravam pra ouvir uma palavra amiga, uma estória ou uma história.
Hoje decido limpar as prateleiras na ala de filosofia, uma das minhas alas favoritas, sempre cheia de mistérios, coisas velhas e muita poeira... pego meus equipamentos de trabalho, um pano velho, um espanador, uma cumbuca com água e vinagre pra espantar o mofo e entre espirros e tossidas, sorrateiramente escolho um livro pra ler. Meu horário termina, bato o ponto e sigo em direção à quitanda perto do ponto de ônibus, sr. Abdias é o nome do velhinho ranzinza, quase sem dente porém cheio de criatividade e histórias incríveis, que vendes as coisas –
- Boa noite, sr. Abdias, como vai?
- Que queres, menino?
- Ah, me vê aí um tabaco importado e um malboro do vermelho, por favor!- Quando vais parar de fumar? Faz 3 anos que me fizestes uma promessa e não cumpristes ainda.
- É minha válvula de escape, Sr. Abdias.. preciso ir. Obrigado!Volto pro ponto do ônibus, ansioso pra voltar pra casa e fazer um cuscuz com charque. De repente um cara se aproxima e me aborda.
- Aí, qual horário do ônibus?
- Geralmente passa às 18h15, ta um pouco atrasado.
- valeu.
Já são 18h32 e finalmente subo e procuro um lugar pra sentar em meio ao caos de pessoas estressadas, birrentas e fedidas. Pego meu celular e seleciono uma playlist de Clara Nunes, vou seguindo, pego no sono ainda dentro no automóvel e acordo com o cobrador dizendo que era a última parada.
- puta, não acredito que perdi o ponto!
Fico extremamente irritado, acendo um cigarro e penso no que fazer. Logo em frente havia um boteco.
- Já sei, vou tomar uma cerva e escutar samba.
Pego uma cadeira e sento sozinho, chamo a garçonete e peço uma cerveja, gosto das mais geladas.
- Moça, traga uma cerveja bem gelada!
- Pode deixar! Hoje temos caldinho de feijão e sururu.
- Traga um caldinho de feijão!
- Sim, senhor.
Minha vontade de comer cuscuz com charque deixarei pra amanhã. Enquanto espero a cerveja e o caldinho chegarem, observo como não quer nada o salão e a banda fajuta que estava tocando... aproveito pra ler um pouco o livro que havia pego na biblioteca, mas com todo esse brega tocando será um pouco difícil me concentrar, digo pra mim mesmo. O meu pedido chega e junto veio o cara que me abordou na parada, ele trabalhava como garçom lá, não pediu licença e já foi sentando e puxou assunto:
- Normalmente as pessoas vem acompanhadas
- Eu não gosto quem me acompanha, prefiro fazer as coisas só
Ele se levantou com uma cara feia e aproveitei um caldinho bem temperado com ovo de codorna, charque, feijão de boa qualidade e a cerveja estava trincando. Pedi a conta e voltei pra casa. Finalmente, tiro as sandálias de couro, a blusa e a calça... não há nada melhor que chegar em casa quando se está cansado. Antes de ir pro banho, ligo a vitrola e tranco as portas. Minha cama me espera e os pensamentos de como seria tudo diferente se morasse em outro lugar tomam conta do meu juízo e passo minutos, quase horas, sem conseguir dormir... boto um café pro preto velho e durmo....
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Amanheceu
RandomEssa obra amadora mostra a vida de um jovem que busca a compreensão da existência através da fé e das atitudes humanas. Uma paradoxo entre o espiritual e o terreno, o hermético e o aberto, a solidão e o amor.