Na mesma noite chovia, relampejava, o som dos ventos assobiava e tão forte quanto um trovão, Iansã resolve soltar um grito... me acordo ligeiro, assustado e ofegante, levanto-me e abro as janelas e de soslaio contemplo esse grandioso fenômeno natural.
Na minha cabeça, as imagens de um pesadelo que acabara de sonhar resolvem se apresentar e junto com ele aqueles sentimentos de confusão, dor, solidão, tortura e gosto de fel, revirava o estômago e o pensamento. Pego meu companheiro de reflexão, o cachimbo, bem acabado feito de uma madeira portuguesa, envernizado, marrom claro. Já que perdia o sono, resolvo sentar na cadeira de balanço de vó... a cada balançada era um pensamento, era uma baforada, era uma lágrima.
Lembro-me de minha infância no interior de Pernambuco, um menino pobre, sem muitos amigos, sem muito afeto, sem muita luz, sem muito nada. Fazia de seus amigos os animais. Era um bruguelo de pé descalços, não por ser pobre, porque nunca fui miserável, podia sentir melhor a terra entre os dedos e a textura das pedras que pisava, sempre sem camisa e uma bermuda de algodão cru, igual a um caboclo, cabelo longo, negro igual a noite e liso igual as folhas de uma bananeira, olhos grandes, castanhos, boca carnuda e nariz grande. Há quem diga que era uma criança bonita.
Morava com minha vó numa casa de campo com um terreno espaçoso, com um São Jorge na porteira, cheio de animais, plantas de cura, árvores frutíferas, ela era uma velha trabalhadora, benzendeira, devota de santos, muito sensível, amorosa e adorava cozinhar... seus cozidos de galinha caipira, as que criávamos no nosso terreno, era simplesmente dos deuses, comia de joelhos. Ela era a minha família, nunca conheci meus pais, não sei de onde são, o que são nem como são, tampouco tive sequer curiosidade.
Depois do trabalho no campo fiz da minha solidão minha companheira de caminhadas adentrando no mato, na caatinga e no roçado. Me recordo muito bem de quando me arriscava perambulando na mata fechada, somente para chegar na cachoeira, onde Oxum me mostrava o que é o amor e o pior de mim através dos espelhos d'água. Era uma belezura ver aquelas pedras molduradas pelas leves batidas da água doce, as corujas piavam, as corre-campos voavam através dos capins, os pássaros cantarolavam a canção da Mãe enquanto eu deitava no solo e apreciava toda a manifestação, me sentia pleno. Contudo, naquele dia foi diferente,de alguma forma me senti acolhido nos braços da cachoeira.
Depois da adoração e da renovação espiritual que sentia, o sol já dizia adeus e eu também. Volto pra casa num breu só, as estrelas era meu norte e a lua minha bússola, nem os cachorros do mato uivavam, era somente eu e eu. Fiquei aflito, respirava fundo pra não ver nenhuma alma penada, nem um animal selvagem, nem uma pessoa que me fizesse mal.
Começo a andar vertiginoso, sentia que algo não estava certo, o aperto no coração, o nó da garganta era sinestésico e eu andava cada vez mais depressa, corria, voei... chego na rua de casa, as luzes dos postes velhos só piscavam aleatoriamente e escutava uns sussurros de longe, bem de longe... caminhava em direção a nossa casa e avisto pessoas na porteira, fico confuso e duvidoso, cheguei perto de dona Conceição, uma velha simpática, cabelos alvos como a neve, pele enrugada devido ao trabalho árduo no campo, vaidosa e muito cheirosa, adorava vestir uns vestidos de flores, sandálias de couro, ela só saia de casa com um escapulário, branco quase amarelado amarrado no pescoço, era a melhor amiga da minha vó, as duas conversavam saliências e trocavam receitas na cozinha, dona Ceça se encontrava na porteira, parecia me esperar e pergunto:
- O que houve, dona Ceça?
- fio, suncê não quer ir dormir lá em casa hoje?
- Oxe, eu mermo não... eu quero saber o que ta acontecendo! Por que tantas pessoas aqui?
- Chegue fio!
Me agarrou pelos braços pra servir de apoio enquanto me direcionava a sala. Lá está minha vozinha, deitada no sofá velho, gélida e pálida com um lírio na mão. Não resisti, pulei em cima dela, reanimei, chorei, pedi pros deuses me acordarem daquele pesadelo, não podia acreditar que a razão da minha vida havia partido. Fiz questão de ficar em casa, cantando os rezos e as musicas favoritas dela acompanhado pela sanfona de seu José, marido de dona Ceça, Luiz Gonzaga era seu cantor predileto, cantei "Asa Branca" continuamente com lágrimas nos olhos e a garganta seca.
Mais uma vez o galo canta e levamos Dona Chica pra ser enterrada no Cemitério de João de Deus, ainda sofria penamente, mas entendi que era hora da partida. Voltei pra casa e deixo exatamente tudo do jeito que estava, fiz questão de deixar as coisas do jeito que ela gostava, as fotos pintadas nas paredes, os jarros de lírios em cima da mesa, a cama bem forrada com uma lençol engomado azul claro... nada mudei.
Naquela noite de trovoadas em meio a pesadelos e baforadas percebi que nascemos só e morremos só, faz parte da natureza. Assim como Iansã me acordou com seus trovões e ventos tempestuosos, eu me acordei para o despertar íntimo do meu ser, a capacidade de amar as pessoas assim como eu amo a dona Chica. O poeta da minha vida me diz:
"Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge.
Mas finge sem fingimento.
Nada 'speres que em ti já não exista,
Cada um consigo é triste.
Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas,
Sorte se a sorte é dada." (Ricardo Reis, in "Odes"
Heterônimo de Fernando Pessoa)
Olho pro céu e o horizonte já amarela, levanto da cadeira, enxugo os olhos, cuspo o fumo no pote de barro e corro pro banho, como sempre estou atrasado e entediado por pensar mais uma vez como meu dia será...
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Amanheceu
РазноеEssa obra amadora mostra a vida de um jovem que busca a compreensão da existência através da fé e das atitudes humanas. Uma paradoxo entre o espiritual e o terreno, o hermético e o aberto, a solidão e o amor.