O coração de Anak'mar palpitava de uma maneira diferente aquele dia. Não era o ritmo acelerado de suspense, muito menos o descompasso de um susto, mas um pulsar ardente e vigoroso, como um vulcão prestes a entrar em erupção.
Apoiou-se na murada com as mãos e os pés, tal qual um felino. Prendeu a respiração, contou até três e saltou. Equilibrou-se no galho, que chacoalhou e espalhou suas folhas. Caminhou pelo ramo através da densa folhagem, um pé atrás de outro, e seguiu o som do alaúde como um pássaro atraído pelas flores, a janela logo acima, quase ao alcance de sua mão. Quase.
Olhou para baixo uma última vez. Com sorte, a queda quebraria apenas suas pernas. Pior que isso, teria que explicar o que fazia na parte interna do castelo.
Mas o prêmio valia arriscar aquele castigo, então saltou outra vez.
Seus minúsculos dedos alcançaram o parapeito da janela, e seu corpo atingiu a parede, por pouco não o derrubando com o impacto. Apoiou os pés em duas cavidades nos tijolos e espiou pela janela. Seu coração ameaçou fugir pela boca.
Ela era linda.
As bochechas rosadas e os longos cabelos dourados da garota escondiam parte de seu rosto, que Anak'mar completou com sua imaginação. Seus sentidos se entorpeceram com aquela visão e a melodia que a acompanhava. O tempo e o mundo ao seu redor se tornaram insignificantes. Até mesmo o vento parecia se acalmar com a naturalidade com que a garota conduzia o alaúde.
Então ela abriu os olhos.
Anak'mar abaixou a cabeça, torcendo para que ela não o houvesse avistado.
– Quem é você? – perguntou uma voz aveludada.
O garoto olhou para a árvore atrás de si. Um pulo e estaria longe dali em questão de instantes. Mas havia sentimentos dentro de si impossíveis de ignorar. Ergueu a cabeça com cautela, e fitou pela janela.
A garota o encarava de volta com um misto de medo e curiosidade. Ao ver que se tratava de outra criança, o susto deixou seu rosto.
– Mil perdões, m-madame – gaguejou Anak'mar. – Eu não pretendia lhe assustar.
– Vai me fazer algum mal?
– Não! Eu só queria ouvir sua música de perto.
A menina hesitou por um momento, então lançou-lhe um aceno convidativo.
– Entre. Ninguém nunca quis me ouvir tocar.
Anak'mar olhou para os lados – então percebeu o quão estúpido isso pareceu, levando em consideração que se encontrava do lado de fora de uma janela – e escalou o parapeito para dentro do recinto.
Os dois trocaram olhares e o silêncio tomou conta do salão.
– Como se chama? – ela perguntou, quebrando o gelo. – Meu nome é Gwendoline D'Angelo, mas pode chamar-me de Gwen.
– Prazer, m-madame. Me chamo Marko. – E fez uma reverência.
– Pare com isso. – A garota levou uma mão à boca e deu uma tímida risada. Anak'mar desviou o olhar. – Não me chame de madame, não é apropriado.
– Sim, s-senhorita.
– Gosta de minha música?
– Todas as noites eu passo pelo corredor lá fora e a ouço tocar, senhorita Gwen. Por favor, me perdoe.
– Não há problema – respondeu a garota, sem conseguir esconder o sorriso. – Mora no castelo, Marko?
– Eu trabalho na carpintaria, senhorita.
– Gostaria de me ouvir tocar outra melodia? – O sorriso delicado parecia estar gravado permanentemente no rosto da garota.
O estômago de Anak'mar embrulhou.
– Não quero incomodar, senhorita.
– Não é incômodo. – Gwen puxou o alaúde para perto de si. – Sempre quis que alguém apreciasse minha música, entretanto meu pai nunca me apoiou.
A atenção de Anak'mar se voltou para o instrumento. A madeira reluzia à luz dos archotes, produzindo uma cor âmbar que só um tipo de madeira poderia originar.
– Seu alaúde é lindo. Talhado em cidônia dourada. Leve, mas resistente. E com uma acústica incrível.
– Como sabe tudo isso?
– Meu pai me ensinou.
– Ele era um luthier?
– Não. – Anak'mar fez uma pausa. – Ele era carpinteiro, mas fazia instrumentos quando tinha tempo.
– Quer tocar um pouco? – perguntou, irradiando interesse.
– Eu não poderia.
– Claro que pode. Quero ouvi-lo tocar. – A garota estendeu o instrumento na direção do garoto.
Anak'mar hesitou por um momento, mas encostou seus dedos no corpo do violão, sentindo-os deslizar pelo verniz que protegia a madeira.
– Gwendoline? – Uma voz masculina, fria como um vento invernal, percorreu o corredor e invadiu o salão.
– Meu pai – sussurrou a garota, num sobressalto.
Anak'mar agiu com prontidão. Em meros instantes, já se debruçava na janela.
– Não pule, você vai se machucar.
– Eu sei me virar.
– Vou vê-lo novamente?
Anak'mar queria dizer que sim, que ele a visitaria todos os dias. Mas aprendera uma coisa em seus curtos anos de vida – nagôs não pertenciam ao mundo dos nobres, a não ser limpando seus dejetos e servindo-lhes comida.
– Talvez, senhoritaGwen. – E sumiu pela janela.
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Réquiem para a Liberdade
FantasiMarko é um ex-escravo liberto que vaga pelo reino em busca de respostas para uma maldição que o assola. Quando ele se aproxima de uma vila de pescadores dominada por um tirano, ele terá que escolher ignorar ou proteger um povo cujo sofrimento se ass...