A detetive

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Um de agosto de 2018 
Abriu o olho direito. Abriu o olho esquerdo. Olhou ao seu redor. Tinha dormido na varanda e sua baba havia congelado. Não morreu por causa da quantidade de álcool em seu sangue. Levantou-se, fechou a porta que dava para a varanda e aconchegou-se no sofá. Eram 9 horas da manhã em seu relógio acima da prateleira onde guardava lembranças de sua família.  Precisava chegar ao trabalho às 13 horas. Dormiu de novo.
Agora eram 12 horas e seu apartamento estava uma zona. Mas ela precisava trabalhar. Estava um aluguel atrasado de ser despejada de casa. Levantou-se, olhou ao redor e viu círculos. Ainda estava bêbada. Teria que se recompor. Era uma detetive forense, precisava de sua mente e de suas habilidades cognitivas mais do que tudo. Tomou um banho. Extremamente gelado, daqueles de sentir a pele arder de tanto frio. Tomou 1, 2, 3, 4, 5 canecas de café, daquelas enormes do Starbucks. Olhou-se no espelho. Ainda sentia nojo de si mesma. Antes, ao tomar banho, tomou cuidado para ter o mínimo de contato possível com seu corpo, e agora nem conseguia olhar-se no espelho. Isso seria resolvido depois. Agora precisava trabalhar. Não se sentia em condições de dirigir, então deixou seu carro na garagem do prédio e pediu que lhe chamassem um táxi. Em alguns minutos o taxi chegou e ela chegou atrasada ao trabalho de novo. Era a decima segunda vez naquele mês e isso também precisava ser resolvido.
Chegou e procurou sua mesa. Estava lá como ela sempre deixava: impecavelmente organizada, com os processos do dia a serem analisados e fechados. Nunca havia arquivado nenhum, muito pelo contrario, desarquivava aqueles que ninguém dava importância para reler. Fazia um trabalho impecável e era a única coisa em sua vida que estava conseguindo mantê-la viva e sob controle. Sentou-se e começou o trabalho.
O caso 4589 era sobre um sequestrador de modelos que havia desaparecido do mapa e ainda pagava pensão a sua ex-esposa. Três das quinze modelos que tinha sequestrado haviam sido encontradas pela delegacia e estavam em casa agora. Porém ele havia sumido e isso a intrigava. Nem mesmo os registros do banco conseguiam dar um paradeiro. Ela pegou os arquivos do caso e enfileirou-os em sua mesa. Long Island 101, Long Island 102 e assim por diante, foram os endereços ligados ao caso. Endereços de famílias principalmente, mas um em particular, o Long Island 108 era de um açougue que não funcionava mais devido ao mau cheiro que havia no lugar. Haviam descartado a possibilidade de o sequestrador ter se escondido lá devido ao fato que, segundo sua ex-esposa ele era obcecado com limpeza e perfumes. Porém isso ainda a intrigava e não parecia tão simples assim. A alguns meses atrás, devido a sua insistência, a policia havia mandado alguns policiais para averiguar o local, porém estava vazio, sujo e fedorento, porém vazio. Mas algo a intrigava sobre isso. 
Era a hora do seu almoço e sua barriga roncava. Pegou seu passe e como de costume atravessou a rua e andou até o restaurante. Pediu uma porção de batatas e carne. O garçom explicou-a que a carne estava em um refrigerador fora do restaurante, pois segundo as leis sanitárias daquele lugar, a carne precisava estar em contato com o mínimo de pessoas possíveis, portanto demoraria um pouco para chegar a suas mãos. Ela não se importou e disse que tinha algumas horas de folga.  Ligou para sua melhor amiga, precisava desabafar. Caiu na caixa de mensagens. Decidiu que passaria em sua casa mais tarde.
Alguns minutos depois, o seu prato de comida chegou e ela lembrou-se do que o garçom havia dito sobre a carne e pesquisou o motivo dessa nova lei. Descobriu que foi devido a casos de insalubridade dentro dos restaurantes, que, para não gastar mais dinheiro, guardavam a carne e outros congelados no mesmo refrigerador, mesmo que a carne tivesse que ficar em uma temperatura diferente, o que permitia o livre transito de funcionários para dentro e fora desses refrigeradores.  Agora com a nova lei, os refrigeradores de carne teriam que ficar fora do estabelecimento, como se fosse um adendo ao restaurante e seriam fiscalizados por açougueiros profissionais a cada mês. Isso a intrigou profundamente.
De volta a delegacia e com o caso da carne ainda na cabeça, sentou-se a sua mesa e procurou amizades do sequestrador nos arquivos e um doa amigos dele era um açougueiro profissional que estava a alguns meses sem emprego devido à intrigas no local se serviço, que haviam se espalhado por ai. Ela procurou o seu contato e pediu que se encontrassem num bar.
Quando terminou o expediente e preencheu os relatórios se dirigiu ao lugar de encontro com o amigo do sequestrador. Chegou lá adiantada e pediu uma cerveja. Ele chegou pontualmente e não pediu nada para beber. Ele estava tão calmo, nem parecia que tinha ido encontrar uma detetive. Na verdade, parecia que havia passado horas se acalmando. Estava com as mãos suadas, porém não as escondia.Achou estranho ela ter pedido para eles se encontrarem fora da delegacia. Ela explicou que trabalhava com casos arquivados e que a delegacia não se responsabilizava por eles, já que tinham tomado muito tempo e não tinham descoberto nada sobre eles. Ele perguntou porque ela achava que dessa vez conseguiria alguma informação e ela prontamente respondeu: - Eu sempre consigo o que quero, pelo menos nos meus casos. E para começar, sei que o ultimo açougue que você trabalhou foi fechado pois não atendeu às normas de lei que exigiam que o freezer de carnes vermelhas fosse colocado do lado de fora. E também sei que se esse freezer ainda estiver dentro do açougue, ele precisa ser extremamente limpo, do jeito que seu amigo sequestrador gosta. Só preciso que você me diga ou faça algo suspeito em relação a isso, para que eu tenha um indicio de que seu amigo está escondido lá e você está ajudando ele a se manter, senão não teria uma renda fixa de 350 dólares todo mês.
Quando ela terminou de falar, ele mordeu o lábio superior. Nesse momento, ela se levantou. Não precisava ouvir mais nada. Foi direto para a delegacia pedir que averiguassem o lugar. Seu chefe não deu importância:
- Detetive, esse caso foi arquivado a mais de 7 meses. As famílias já estão até conformadas com o andamento das investigações. Como você pode achar que um amigo estaria mantendo um sequestrador conhecido dentro de um freezer desativado? Esse amigo tem uma filha! Se ele tivesse algum juízo e soubesse o paradeiro desse homem, deveria ter dito a muito tempo atrás.
- Ele não tem uma filha, tem uma enteada com quem não se dá nada bem e tem mais. Ele está desempregado a 7 meses e recebe uma renda mensal de 350 dólares. Todos sabemos que o
sequestro das meninas estava sendo para trafico de mulheres. Quero que vão a esse açougue imediatamente, se nós o acharmos podemos encontrar as outras meninas!
- Você precisa ir para casa e dormir. Essa renda dele pode ser de outra coisa. Ele precisa se manter.
Saiu da sala do seu chefe batendo a porta com toda a força. Iria sozinha a esse açougue.
Chegou em casa e pegou sua arma na segunda gaveta de sua cômoda e dirigiu-se a seu carro. Não podia arriscar a vida de um taxista assim. Dirigiu por alguns minutos e ao parar num sinal vermelho, relembrou sua noite anterior. Todos os detalhes, todos os sentimentos, todas as sensações. O desespero, o medo e a aflição. Tudo. O caso teria que esperar um pouco. Ela odiava fazer isso, mas sabia quando parar. Foi a um bar e pediu uma cerveja. Relaxou. O garçom era bem charmoso e ofereceu mais uma. E assim foi pelo resto da noite, até que ela apagou.
Não sabia como tinha chegado em casa, não sabia onde estava seu carro. Era 1:30 da manhã e ela não se lembrava de nada.
Dois de agosto de 2018
Abriu o olho direito. Abriu o olho esquerdo. Olhou ao seu redor. Tinha dormido na varanda e sua baba havia congelado. Não morreu por causa da quantidade de álcool em seu sangue. Levantou-se, fechou a porta que dava para a varanda e aconchegou-se no sofá. Eram 9 horas da manhã em seu relógio acima da prateleira onde guardava lembranças de sua família.  Precisava chegar ao trabalho às 13 horas. Dormiu de novo.
Acordou dessa vez às 11 horas. Olhou em volta. Seu apartamento nunca tinha estado tão bagunçado. Fedia a roupas sujas de suor e comida estragada. Não se lembrava a quanto tempo não comia uma refeição digna. Estava se alimentando de batatas e carne a tanto tempo que não lembrava o gosto de uma bela salada. 
Levantou-se e decidiu que hoje isso mudaria. Lembrava-se do caso 4589 e sabia que precisava termina-lo. Fechar um caso como esse poderia terminar em uma promoção e isso resolveria a maior parte dos seus problemas. Começou a organizar suas roupas. Olhou-as no chão. Roupas de festa, roupas de academia, roupas sociais. Não recordava de tê-las usado. Estava usando sua calça jeans e suas regatas brancas a tanto tempo que pareciam uma parte do seu corpo. Hoje não seria assim.
Arrastando os pés no chão imundo do seu apartamento, pegou algumas roupas e dirigiu-se à lavanderia. Colocou as roupas que havia pegado na lavadora/secadora e aguardou. Depois de alguns minutos a roupa estava pronta para ser usada. Não era um look muito arrumado: uma calça capri acompanhada de uma camisa bege de linho e um cardigã preto. Não era formal mas trazia um ar de dignidade e seriedade, coisas que ela nunca mais imaginou ter. Permitiu-se fazer um sanduíche com salada. Não lembrava de ter comprado pães e muito menos de ter feito salada, porém as lembranças não eram muito recorrentes em sua vida nesse momento. Depois de tomada banho e alimentada, ela pegou seu carro. Precisava lutar por esse caso. Precisava pagar seu aluguel.
Chegou cedo à delegacia. Foi aclamada por seus amigos. Sentiu-se um pouco melhor. Demorou alguns minutos e o seu telefone tocou. Atendeu:
- Bom dia. Aqui é o amigo do sequestrador. Preciso falar com a detetive responsável pelo caso dele.
Sua voz era a mesma de quando eles haviam se encontrado. Trabalhosamente calma e comedida.
- Aqui é a detetive. Pode falar
- Preciso te contar, digo, confessar algumas coisas. Podemos nos encontrar no mesmo bar? 
- Sim. Mesmo horário de ontem.
Pediu permissão e saiu da delegacia. Fez o mesmo trajeto e tentou parecer bem. Mais uma vez
Encontraram-se no mesmo bar, no mesmo horário de ontem. Ela com uma cerveja na mesa e ele apenas com as confissões a fazer:
- Você estava certa. Os 350 dólares que eu estava recebendo era para mantê-lo. Ele estava no refrigerador desativado do último açougue onde trabalhe. A polícia não o encontrou porque o freezer ainda era dentro do estabelecimento, porém no subterrâneo, por isso o fedor de carne impregnado. Para me pagar, ele usava uma conta fantasma no banco.
- Por que você está falando no passado?
- Ontem à noite, mais ou menos 20 horas, fui receber meu pagamento e ele estava morto. 4 tiros no peito. 
- Entendo. Você tem mais alguma coisa a confessar? Preciso que você vá à delegacia comigo prestar depoimento e não posso perder tempo.
- Ele mantinha as meninas como escravas sexuais aqui em Los Angeles. Me pagava com esse dinheiro. 
- Onde estão essas meninas? 
-Eu não sei.
- Já perdemos tempo demais aqui. Vamos para a delegacia.
Ao chegar na delegacia, o amigo do sequestrador foi levado para uma sala e a detetive ficou atrás do vidro nesta mesma sala. 
Ele estava bastante calmo para alguém que havia descoberto um corpo morto num freezer. Porém ele colocou as mãos em cima da mesa e depois lentamente as tirou. A detetive concluiu que ele sabia algo, mas que não havia matado o sequestrador. Ele poderia saber das meninas. Ela saiu da sala detrás do vidro e entrou na sala do interrogatório. Olhou para seu oficial e disse:  - Pode nos dar licença? 
- Não! Precisamos saber o que esse homem foi fazer lá! 
- Ele tinha ido lá pegar o dinheiro do seu pagamento por manter o sequestrador. 
- Com que dinheiro esse sequestrador mantinha sua família e ainda pagava um empregado?
- Com o dinheiro da escravidão sexual de mulheres aqui em Los Angeles. Algumas das meninas que foram sequestradas deveriam estar com ele ainda. Com o dinheiro que os seus "donos" nojentos davam ao sequestrador, ele tinha como manter sua família e esse idiota aqui!!
- Escravidão sexual?! Aqui é Los Angeles! Não estamos na África!
- Você fala como se essas atrocidades só acontecessem lá. E esse açougueiro aqui tem como nos provar que isso não é verdade. Vamos, conte tudo a ele! 
O açougueiro começou a falar:
- Quando cheguei, ele ainda balbuciava algumas palavras e pediu que eu levasse as meninas que ele ainda tinha. Porém eu não tenho condições e tenho uma família, não poderia fazer isso! Então deixei as meninas num abrigo para adolescentes e procurei a detetive.
- Ele estava mantendo quantas meninas e onde elas estão agora ?
- Ele mantinha 10 meninas. As outras duas que faltavam para completar as 15 cometeram suicídio. Eu as levei para o abrigo das Duas Irmãs. 
- O meu chefe vai mandar uma busca no açougue da rua Long Island 108 e eu vou junto com a psicóloga para o abrigo. 
O seu chefe não disse nada. Não valeria a pena. Ela sempre estava certa. Chamou a psicóloga da delegacia e pediu-a que acompanhasse a detetive até o abrigo.
A psicóloga estava tão bem arrumada. Seu cardigã azul marinho combinava muito bem com sua saia lápis vinho. Usava um colar de pérolas. Tinha um ar tão clássico em seu visual, fez a detetive se sentir 15 anos mais velha. Tinha apenas 25. Sim, extremamente inteligente. Uma garota prodígio. Bem articulada, metódica, antes conseguia enxergar a pior parte das pessoas em apenas alguns segundos. Mas depois daquela noite, nem se aproximava de ninguém. Havia perdido a paixão por seu trabalho. Sentia-se perseguida e observada por todos e todas. Queria voltar no tempo e impedir que aquela noite acontecesse. Não importava que mudasse o curso de sua vida. Qualquer coisa seria melhor do que o que havia ocorrido. Até a morte.
Depois de pensar sobre isso e de falar com a psicóloga sobre as meninas que iriam visitar, foram ao abrigo. Era um casarão antigo, cheio de detalhes em pedra. Parecia uma casa de bonecas enferrujada. Assim que ultrapassaram o portão colonial coberto em lírios, coisa muito estranha, porém muito linda, se depararam com um vento fresco de renovação. A detetive e a psicóloga trocaram olhares de cumplicidade, algo tão escasso na sua vida agora que a detetive estranhou, porém com bons ventos, acostuma-se.
Procuraram a direção do abrigo. Falaram com uma diretora corpulenta, baixinha e muito sorridente. Elevou a cumplicidade que sentiram ao entrar. Isso foi de suma importância, porque nem a psicóloga com todos os seus anos de pratica e conhecimento da mente humana sabia o que falar diante das meninas. Eram quase adultas, porém haviam enfrentado a pior coisa do mundo perto de casa. Isso acabaria com a mente de qualquer um. A detetive tinha certa ideia. Perguntou onde era o banheiro. Estava tão nervosa e ao mesmo tempo confiante e decidida. Mal chegou ao banheiro e vomitou na pia. Sentiu-se um pouco renovada. Era assim que estava se renovando esses dias. Tirando tudo q estava engolindo do seu estomago, literalmente ou não. Era assim que estava sobrevivendo. Chorou como se tivesse 5 anos de novo. Soluçou, vomitou mais até não ter mais o que vomitar. A psicóloga percebeu sua demora e foi busca-la. Num surto psicótico de ansiedade e remorso, começou a lembrar-se de tudo. Da noite de 3 de julho do mesmo ano, quando havia sido estuprada. Lembrou-se de tudo. Do fato de que naquela noite em especial, ela estava se achando linda. Arrumou-se tanto, maquiou-se, usou brincos. Sentia-se especial, como nunca havia antes. Não tinha nada de especial acontecendo. Suas amigas apenas a haviam chamado para sair. Só isso a fez sentir muito bem.
Chegando a festa, foi servida por um belo garçom. Olhos escuros e cabelos também. A pele dourada a fez lembrar a praia, sentia muita falta de sua família na Flórida e isso foi uma boa memoria. Mas decidiu não fazer nada a respeito de sua atração, por mais ardente que fosse. Era uma noite sua e só sua. Iria aproveitar. Dançou, bebeu, bebeu e dançou. Sorriu como menina. Divertiu-se como mulher. As cores em neon da boate, as vozes gritadas e sussurradas. Tudo era tão vibrante. Sentiu-se uma criança ao perder o primeiro dente de leite. Queria espalhar para o mundo a sua alegria. Sorriu verdadeiramente.
Mas o garçom também se sentiu atraído por ela. Porem ele era imediatista. Queria-a naquele instante. Depois de um tempo observando-a dançar e divertir-se, ele aproximou-se. Flertou e foi rejeitado. Educadamente rejeitado. Ela quis dar-lhe seu numero, caso outro dia ele quisesse vê-la. Ele recusou. Queria o corpo a corpo naquele momento. O sexo. A atividade carnal. Era imediatista. E segundo ele conseguiria o que queria. Ela o esnobou e seguiu em frente com suas amigas. Elas bêbadas demais para defender a amiga, apenas a seguiram para um lugar mais próximo dos seguranças. Como se isso fosse salva-la. Só precisou de um suborno e uma conversa no pé do ouvido para que as meninas fossem afastadas dela e o garçom tivesse livre acesso a seu braço e ao seu corpo. Os seguranças garantiram que eles estivessem sozinhos.
Foi levada até um beco e sentiu toda sua alegria esvair-se de seu corpo com muita dor e agonia. Chorou lagrimas silenciosas e foi perdendo o controle e o conhecimento do seu corpo a cada minuto que passava. Sentia suas mãos perderem as funções e o seu corpo perder-se como um todo. Não era mais nada naquele momento. Apenas um objeto. Estava apenas saciando os desejos obscuros e nefastos de um pervertido. Fechou os olhos e tentou gritar. Não foi a mão dele que impediu o grito de acontecer, mas o nó em sua garganta a impedia de fazer qualquer coisa que não chorar.
Depois de uma eternidade dolorida e extremamente triste e grotesca, ela foi deixada no beco sozinha. Suas roupas estavam rasgadas e manchadas de sangue. Sentia dor em cada milímetro de seu corpo. Até em lugares que não conhecia. Sua maquiagem, tão bela antes, parecia uma tela de artista barroco. Finalmente conseguiu gritar.
Gritou até não sentir mais sua voz, seu corpo, até parecer que havia sumido. Rastejou pelo chão sujo de bebida e sexo até que chegou perto de um banco de ponto de ônibus. Estava vazio. Agradeceu ao nada por isso. Não conseguia pensar em ninguém que a estivesse guardando nesse momento para agradecer. Sentou-se e esperou. A essa hora da noite os ônibus eram de graça, principalmente em locais de festa. Esperou alguns minutos, que poderiam ter sido horas que ela não ia perceber. Tentou recompor-se para que o motorista não pensasse que era algo perigoso. Assim que o ônibus chegou ela dirigiu-se ao ultimo banco. Tropeçou e caiu. Não se importou. Levantou-se e foi até o ultimo banco da ultima fileira. Encolheu-se como num casulo.
Ao chegar a casa bebeu tudo que podia. Queria morrer de overdose. Sem sentir dor alguma. Já havia sentido toda a dor que alguém pode sentir na vida.
E bebia assim todas as noites desde então. Era assim que levava a vida. Até o dia que precisou achar o sequestrador. 
Ao chegar no refrigerador, depois de ter bebido tudo que podia e devia naquela noite e de ter lembrado de tudo, o viu comercializando uma das meninas. O homem interessado a apalpava e olhava com gosto e saliva nos lábios para seus atributos. Sentiu toda a dor que sentiu no dia 3 de setembro de 2018. Era como o dejavu mais vivo de todos. Assim que a viu, o comprador correu. Fez certo. Porque dali a alguns segundos o seu comerciante de garotas seria morto com quatro tiros no peito. As meninas viram tudo, mas nada fizeram. Assustaram-se com certeza, mas não se entristeceram ou compadeceram. Ela saiu andando com o ar de dever cumprido. Chegou em casa e dormiu. O melhor sono de sua vida.
Contou tudo isso á psicóloga, entre soluços e vômitos. Poupou-se dos detalhes porque eram dolorosos demais. Sabia que sua pena seria pequena. Era uma boa policial e até onde se sabe de um jeito torto fez um bom dever. Não se preocupava com o futuro. Sabia que depois de ter se sentido acolhida de novo em algum lugar, depois de tanto tempo, nada mais importava.
Agora estava quase bem. Já havia dado o passo mais importante de todos. Havia-se permitido deixar suas muralhas caírem. Agora tudo ficaria bem.

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