Capítulo 1

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- Luck! Pequeno-almoço!

E era assim. Era assim todas as manhãs. Um ciclo vicioso, eternamente repetitivo. Acordar com o grito da minha mãe, comer, vestir, escola, deprimir, deitar, questionar a vida, dormir, acordar. Sempre. Desde que me lembro. Não é que seja mau. Não existiam dramas na minha vida, nada de namorados psicopatas, péssimas notas, vícios ilegais ou pais violentos. Muito pelo contrário. Mas talvez fosse esse o problema. Não havia emoção alguma na minha vida. Talvez um drama, um pequeno drama, melhorasse este profundo estado de melancolia crónico em que me encontrava. Porque parecia não acabar. E estas emoções, este aborrecimento, parecendo que não, rasgam a alma lentamente. Escavam o interior muito vagarosamente, algo como um anão sonolento com uma picareta. Mas a longo prazo, dói. Uma dor que vai aparecendo em etapas tão suaves que pensas que faz parte de ti. E quando reparares, já aprendeste a viver com ela. E isso é triste.

Levanto-me roboticamente. Tão roboticamente como o costume. Gosto de me comparar a um gracioso zombie robô com problemas de pele, quando acordo. Mas não é muito realista. Eu realmente não sou graciosa.

Cambaleio pelas escadas acima em direção à cozinha. E isso pode ser estranho de se pensar. Quem é que tem a cozinha por cima do quarto? Bem, foi mais uma das minhas invenções como criança. Para quê dormir num quarto chato e iluminado, com cortinas de renda e lençóis de ceda, quando posso dormir na minha cave, num aglomerado de cobertores, rodeada de caixas vazias de pizza e brinquedos antigos, longe da civilização e luz solar? Provavelmente não soa apelativo para a maioria, mas era o meu pequeno mundo.

Chego à cozinha naquele estado lamentável costumeiro, o redor dos olhos sujos com o rímel à prova de água da semana passada, baba seca nos cantos da boca, o cabelo no que se parece um complicado penteado medieval, semelhante a um ninho de vespas africanas. Vespas africanas com algum tipo de deficiência.

Desabo na cadeira com um estrondo desnecessário, assustando o Quadrália, o meu gato. Um nome interessante, digamos assim. Mas já que metade da população felina tem como nome "bolinha", ou "pantufa", nada melhor do que identificar o meu gato com uma mistura de "quadrado" e "sandália". Pareceu-me inteligente na época.

Pelo canto de olho da minha visão ainda embaçada, vejo o meu pai pegar na mala do computador e sair porta fora enquanto murmura um "até logo, amores". Mas a minha reposta é cortada por uma caneca de café e duas torradas de manteiga, posicionadas estrategicamente, de forma a não as derrubar com a minha graciosidade matinal.

Devoro o meu pequeno-almoço de forma não tão educada, enquanto observo a minha mãe passear pela cozinha ao telemóvel. Ao longo do tempo, fui começando a ver a minha mãe e o seu telemóvel como um só. Faz parte dela, é como um órgão extra. Mas a verdade é que não o usa como um hobbie, não é nenhum fetiche estranho em ouvir vozes de desconhecidos, ou algum tipo de fuga a tempo com a família. Faz parte do seu emprego. Encomendas atrás de encomendas, cada uma mais bizarra que a outra. Lembro-me de me dizerem, quando criança, que a mamã trabalhava numa loja roupas de carnaval e brinquedinhos para animais. No entanto, nunca me levaram à tal loja. Diziam que eu não iria gostar, ia ser aborrecido. Os anos passaram e acabei por descobrir que a minha mãe trata das encomendas e entregas ao domicílio da sexshop mais conhecida da zona.   

- Amor, despacha-te, estamos atrasadas - sussurra a minha  progenitora enquanto tapa o microfone do telemóvel.

Esforço a minha garganta a engolir ainda mais rápido, evitando ao máximo parecer um trator com problemas no motor. Assim que acabo a minha refeição, que por acaso mal saboreei, corro escadas abaixo em busca de uma roupa lavada. Entro na pequena casinha de banho e olho-me no espelho quadrado a precisar urgentemente de uma limpeza. Admiro os meus olhos. Aquele rímel decidiu fossilizar nas minhas pestanas. Os últimos três banhos não foram suficientes para o derrotar. Em primeiro plano, não sei porque me lembrei de experimentar a maquilhagem da minha mãe. Provavelmente estava demasiado aborrecida. E por causa dessa minha triste decisão de terça feira passada, há uma semana que acordo a parecer um panda.

Volto a subir as escadas a tropeçar, já vestida e com a cara lavada, a mochila sobre um dos meus ombros. Vejo a minha mãe desligar a chamada, pegar na chave de casa e caminhar em direção à porta, parando abruptamente ao me ver.

- O que se passou com o teu olho?

Faço uma cara confusa, até perceber do que se trata.

- Oh! Eu... o sabonete saltou e acertou no meu olho quando estava a lavar as mãos. Eu odeio aquele sabonete, mãe – junto as sobrancelhas enquanto esfrego o meu olho direito que arde, lacrimeja e provavelmente parece uma ameixa demasiado madura.

Ela suspira.

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