Encaro o teto do meu "quarto". Sinto o meu corpo tão cansado e dormente que parece flutuar. Penso na minha vida. Se é que é permitido referir-se a isto como vida. Zero amigos. Zero talentos. Zero de motivação. Sinto como se fosse uma espectadora da minha própria existência. E, honestamente, estava aborrecida. Era uma vida sem piada. Uma vida agraciada pelo doce sentimento do tédio e a delirante emoção de porra nenhuma.
Sou obrigada a parar de me auto insultar ao lembrar-me do meu trabalho de casa. Tenho de criar um logotipo e uma descrição de uma empresa minha, uma ideia maravilhosa do meu professor de informática. Tinha feito todos os possíveis para o assassinar com os olhos assim que ele proferiu as palavras "trabalho de casa", mas falhei miseravelmente. E agora resta-me ficar à espera da criatividade que provavelmente não vai chegar.
Olho para o meu telemóvel. 23:47. A próxima aula de informática é depois de amanhã. Ainda tenho um dia inteiro para stressar e derreter o meu cérebro numa tentativa de conseguir uma nota razoável.
E com esta confusão de pensamentos inúteis, viro-me na cama e apago.
Acordo com um estrondo. Sento-me rapidamente, o meu coração bate a mil. Fico confusa ao encarar as paredes de um branco sujo e deprimente. Foco a minha visão. Volto a assustar-me. À minha frente, uns com uma expressão confusa, outros a conter o riso, encontram-se os meus colegas de turma, virados nas suas secretárias como se eu fosse um leão de circo. Mais à frente, uma professora com as mãos na cintura, olhos de assassina. A realidade acorda-me com um estalo. Adormeci na aula de português e mandei com a cabeça na minha mesa.
Já na cantina, amaldiçoo-me com todas as forças por ter dormido pouco na noite passada. Ser uma pessoa praticamente invisível e sem amigos já é triste o suficiente, fazer um estrondo na sala de aula com uma cabeçada e ser apanhada a dormir pela professora é pior ainda. É em momentos como aquele que eu entendo que não chamar à atenção não é assim tão mau. Fui obrigada a sair da sala e apanhar ar, tendo que me levantar e fazer a caminhada mais vergonhosa da minha existência, com uma plateia a disfarçar risinhos e sussurros. Sorte a minha.
Agarro no meu tabuleiro com uma comida de aspeto não mais agradável do que a do dia anterior. Desfilo para longe com a dignidade que me resta mas, novamente, sou chamada. Viro a minha cabeça numa imitação quase idêntica do exorcista.
- Fábio – saúdo enquanto me sento e contenho o meu lado psicopata.
Ele sorri e continua a sua conversa com o resto dos presentes naquela mesa. Uma conversa demasiado desinteressante, diga-se de passagem.
Como silenciosamente, suspirando vez ou outra. Penso na origem do universo, no aparecimento dos primatas, na evolução humana e no momento em que algo de tão errado aconteceu que, sabe-se lá porquê, o destino me trouxe aqui, nesta precisa escola, nesta precisa cadeira, com estas precisas pessoas.
Arrasto o meu tabuleiro para o lado e tiro um caderno. Começo a rabiscar. Começo a imaginar a minha empresa. Se, no futuro, eu me tornasse alguém e tivesse uma empresa, de que seria? Provavelmente algum tipo de dispositivo parecido com aquela voz automática que se ouve quando alguém não atende o telemóvel. Mas para o dia a dia. Imaginemos alguém a aproximar-se numa tentativa de criar um diálogo. A pessoa tenta um contacto visual, respira, abre a boca para dizer a primeira palavra e... "Chegou à caixa de mensagens, o usuário deseja não ser incomodado no momento, se desejar deixar mensagem deixe um bilhete ou vire as costas e desapareça". Uma invenção de génio, modéstia à parte. Eu usaria.
Começo, então, a desenhar uma pomba, símbolo da paz, assim como uma pessoa sorridente e um escudo. E, por breves segundos, esqueço-me da existência daquele ser humano irritante sentado à minha frente.
- Luck? – quase salto da cadeira – O que estás a fazer?
Suspiro. Encaro o Fábio.
- Trabalho de informática.
Volto a olhar para o meu caderno e tento recuperar a concentração divina em que me encontrava.
- O que é que tens de fazer?
Claro. É obvio que este verme não se iria contentar com apenas uma pergunta. Em que situação hipotética este meu trabalho teria a mínima importância na vida do Fábio? Porquê que ele precisa de saber? Em quê que o meu dispositivo, que me daria um jeito enorme no momento, mudaria alguma coisa na sua vida miserável?
Sorrio. O sorriso mais cínico uma vez praticado.
- Um logotipo de uma empresa.
Desta vez não paro de o encarar. Isso porque a minha experiência de vida é mais do que suficiente para saber que vem aí outra pergunta. Então, mentalmente, acompanho-o quando diz:
- E qual é a tua ideia?
Então eu rio internamente. Mas decido responder.
- Um dispositivo que funciona como uma caixa de mensagens na vida real. Quando alguém te vem incomodar, uma voz robótica diz que não estás disponível e pergunta se querem deixar mensagem – sorrio – eu usaria provavelmente durante a minha vida toda.
Por dois segundos ele encara-me com a testa franzida. Depois faz o inesperado. Ri. Uma gargalhada contagiante.
- És um génio! Meu Deus, quero um aparelho assim!
Depois analisa os meus rabiscos.
- Vais entregar o trabalho assim? Numa folha de linhas?
- Sim? – respondo na defensiva.
- Meu Deus, não faças isso. Tens uma ideia ótima, não a estragues dessa maneira.
Conto mentalmente até cinco. Quem é que este inseto pensa que é para falar dos meus rabiscos desta maneira?
- Bem, a não ser que tenhas uma ideia melhor, vai ser assim que vou entregar o meu trabalho – respondo com o meu tom mais venenoso.
- Podes vir a minha casa depois das aulas? - engasgo-me.
- O quê?
-Tenho uma mesa de desenho. Podes fazer o teu logotipo digitalmente e trabalhar nele no computador. Vai ficar muito melhor e muito mais profissional – ele sorri ligeiramente quando vê a minha hesitação – Eu ensino-te. E a minha casa é perto da escola.
Penso por uns segundos. Parece-me uma ideia interessante. Aliás, o que é que poderia dar errado? Eu ser violada? Sinceramente, estou num período da minha vida tão aborrecido que acho que isso não seria tão mau como passar mais uma noite a filosofar sobre pó.
- Tudo bem – sorrio – Isto é... Se não incomodar.
- Claro que não, não te convidava se incomodasses. Eu espero por ti na entrada da escola depois da última aula, tudo bem? – assinto.
Ele levanta-se, pega no tabuleiro e despede-se de mim com um "até logo". Agarro no meu telemóvel e envio uma mensagem à minha mãe, chegaria um bocadinho mais tarde hoje.
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Luck
Teen FictionLucy. Ou Luck, como lhe devem chamar. Uma rapariga provavelmente como as outras, com uma vida mediana, a beirar o aborrecido. Por vezes, o aborrecido é suficiente. Não neste caso. Não com ela.