Capítulo 2

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Dou um salto na cadeira quando percebo que encarei a parede durante tanto tempo que acabei por babar a mesa. Os olhos da professora detetam o pequeno espasmo e movimento rapidamente o meu braço esquerdo numa tentativa desesperada de esconder a baba. A mulher encara-me durante uns segundos como se conseguisse ler a minha alma. Forço um sorriso amarelo.

- E é tudo por hoje – diz a velha no seu melhor tom superior, forçando a sua postura no que se parece um pavão – para trabalho de casa a página 31 e 33.

Ouve-se uma mistura de suspiros e lamúrias, logo abafada pelo som da campainha. Empurro o meu livro para dentro da mochila e saio no caminhar mais rápido que consigo executar.

A fila da cantina parece mais longa a cada minuto. Sinto como se estivesse a ser lentamente arrastada para longe, apesar de que, segundo a lógica, devo estar a aproximar-me. Quando finalmente agarro o meu tabuleiro repleto de um volume empastado de cor não registada pelo ser humano (provavelmente considerado comida pelos funcionários desta escola), encaro o chão na expectativa de chegar a uma mesa vazia bem longe da população. No entanto, nos primeiros cinco passos decidem evaporar o meu humilde desejo.

-Luck!

Procuro o dono da voz. Numa fileira de mesas paralela ao lugar onde me encontrava, acena-me um rapaz de cabelo meio rapado. Suspiro.

Aproximo-me da mesa com o meu melhor sorrisinho forçado.

-Então... - demoro mais tempo do que devia a lembrar-me do nome do assassino de desejos - ... Fábio. Tudo bem?

Ele sorri em resposta e adoto isso como um "Senta-te. Decidi destruir todas as tuas expectativas de viver sem contacto humano porque não é assim que a vida funciona. Não podes simplesmente não ter vida social. Agora senta-te e observa-me falar com todo o mundo enquanto comes de maneira constrangedora por estares completamente de lado e não fazeres ideia do que nenhum de nós está a falar. Vá, senta-te!". Mordo o interior do meu lábio enquanto penso nas maneiras mais dolorosas de assassinar alguém. Sento-me.

Depois da quarta garfada e cerca de três risadinhas forçadas por se terem dirigido a mim e não saber do que estavam a falar, decido prestar atenção na conversa. Ou pelo menos tentar.

- ... e então é disso que estou à procura. Além de que só o facto de poder dizer que tenho uma produção já soa bué profissional – diz o demónio, quer dizer, o Fábio, acabando com um sorriso lateral.

- Uhm... Produção? – inclino a minha cara enquanto junto as sobrancelhas em confusão.

- Ya... Para o meu canal no youtube, sabes? Ouviste a conversa, sequer? – ele ri.

Neste momento todos os meus neurónios entram numa batalha épica. Por um lado, ajudar na produção de vídeos parece extremamente interessante e provavelmente iria quebrar a minha rotina. Por outro lado... o tempo diário que teria de passar na companhia de outros seres humanos iria disparar em flecha... E eu não sei se quero isso. Por esse motivo, decido continuar silenciosa durante o resto da refeição, enquanto remoía toda uma confusão de pensamentos.

Passo a primeira meia hora da aula de matemática a encarar a professora nos olhos, numa tentativa de a fazer sentir-se desconfortável. Com isto descobri que professoras são completamente imunes a esse tipo de coisa, algo que me deixa bastante irritada. Mas, tal como em todas as aulas de matemática, ao chegarmos à segunda parte da aula, a professora decide escolher alguém para explicar exercícios com ela.

- E então... Alguém se oferece? – a mulher que se assemelha estranhamente a um koala pergunta – Alguém?

Enterro-me lentamente na minha cadeira, desistindo de qualquer tipo de contacto visual. Se tiver sorte ninguém vai reparar que existo. Por favor.

É quando, como costume, uma rapariga de cabelo vermelho vivo se voluntaria. O corpo completamente ereto na cadeira, o braço esticado na direção do teto. A sua cara redonda, portadora de uns doces olhos castanhos com pestanas invejáveis, tem uma expressão confiante, quase de desprezo.

- Tudo bem. Vem cá para a frente, Fabia...

- Fairy – corta-a com uma expressão agora irritada – Por favor, professora, eu prefiro Fairy.

- Fairy – a Dona Koala parece impaciente – Podemos dar continuidade à aula?

E então a menina Fairy, num caminhar mais comum e desleixado do que se esperaria dela, posiciona-se do lado esquerdo do quadro de marcadores.

E mais uma vez a aula continua. Chata, aborrecida, cansativa. Até que tenho a ideia mais brilhante de todas as ideias brilhantes. Já que a professora se mostra imune ao meu constante e penetrante, não tão sedutivo contacto visual, decido experimentá-lo na rapariga de cabelo fogo. Suspiro uma, duas vezes. Pisco os olhos. E então... começo. Inclino a minha cabeça ligeiramente para o lado direito. Deixo um pequeno, quase invisível sorriso formar-se nos cantos da minha boca. E com os olhos ligeiramente cerrados, encaro-a. São precisos uns dois minutos para que repare em mim pela primeira vez. Para minha surpresa, ela não parece intimidada. Pelo contrário. Provavelmente pensa que estou interessada no que está a dizer. Então nos cinco minutos seguintes, a ruiva alterna o seu olhar entre mim e o rapaz loiro da turma, que metade da escola parece sonhar em ter debaixo dos lençóis. Apesar de que eu não conheço metade da escola. Mas enfim. O meu plano não parece funcionar e volto a ficar aborrecida. Mas não desisto. Cerro mais os olhos. Aumento o meu sorriso para algo ligeiramente pervertido. E pela primeira vez, parece surtir algum efeito. A Fairy parece franzir levemente as sobrancelhas quando me olha. Mas volta ao normal rapidamente. Não, não, não, não. Eu vou ganhar esta batalha. Pensa, Luck, pensa. Contenho um sorriso quando tenho mais uma ideia de génio. Espero que o olhar da ruiva volte para mim. Quando finalmente me encara, dou um sorrisinho. De seguida, baixo lentamente o meu olhar. Perco uns segundos no pescoço, depois nos ombros e, finalmente, paro nos seios. Não volto a subir o olhar para medir a sua expressão. Perco mais algum tempo focada no seu peito até que volto a descer. Primeiro a barriga, depois alguns segundos na zona da virilha, até acompanhar todo o comprimento das pernas. E, novamente, retorno aos seus olhos que, tal como esperava, me encaram, levemente arregalados. Para terminar, faço um rápido sinal com as sobrancelhas e mordo o lábio inferior. A boca da Fairy abre-se numa pequenina mas percetível abertura. E só aí reparo que se encontra calada. Um silêncio cortante preenche a sala inteira e a metade da turma que se apercebeu da quebra repentina das explicações, encara a professora e a rapariga em confusão.

- Uhm... Fabiana? – a professora chama – Ou Fairy, como preferires. Está tudo bem?

A ruiva ainda me encara durante uns segundos, até se tentar recompor. Pigarreia.

- Sim! Está tudo ótimo! – solta um risinho nervoso – Como eu estava a dizer...

E então continua todo aquele discurso aborrecido sobre equações e números, contas complicadas, operações sem sentido. Mas desta vez a intercalar olhares entre o quadro e a parede de fundo da sala. Sorrio satisfeita. 

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