Capítulo 3

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O céu não tinha mais cor, nem mesmo o arco-íris mais deslumbrante faria-me enxergar a beleza da natureza naquela manhã ensolarada. Não recordo-me com clareza do que acontecera horas atrás. Com certeza, havia desmaiado. Onde estava Anne-Marie? Olhei ao redor e só enxerguei paredes brancas, alguns fios instalados no meu coração, enquanto, no pulso, uma agulha enviava medicação até as veias. Oh! Após algumas piscadelas, reconheci o ambiente: era a enfermaria. Se eu erguesse o corpo, era capaz de enxergar um televisor, uma mesa com lírios, álcool em gel e bombons. O silêncio era tão intenso que eu ouvia nitidamente o som da minha respiração — o ar entrando e saindo dos meus pulmões, fazendo-me viver.

Sim, elas haviam voltado para me atormentar. As vozes. Se eu não procurasse ajuda espiritual, o caso iria se agravar. Eu não tinha condições físicas e psicólogas para lidar com algo desse tamanho. Lembro-me da minha infância, como elas me influenciavam da pior maneira possível. Deus do céu! É como se fosse hoje, uma manhã de primavera com várias flores amarelas no jardim quando eu apontei uma faca para minha irmãzinha e a perseguir, até meu pai empurrar-me no chão e tirar o utensílio de cozinha das minhas mãos. É uma péssima recordação, eu sei...

Procurei alguma enfermeira ou as estagiárias, mas, não havia ninguém naquele quartinho branco, somente eu e o turbilhão de emoções envoltos no subconsciente. Resolvi olhar as horas no relógio, os ponteiros marcaram 09:00. Lembrei-me que Cecília tinha o sonho de ser médica, por isso, dedicou-se para conseguir um estágio nessa pacata enfermaria e conseguiu, graças ao seu talento nato em cuidar de pessoas.

A porta abriu-se e a loirinha dos lábios de mel adentrou, fazendo-me recordar do seu papel na peça do ano passado, interpretando uma belíssima Julieta do século XXI.

    — Você já acordou? Desculpa entrar sem bater, pensei que o calmante ainda estivesse fazendo efeito. — Explicou-se, com uma pitada de timidez.

Cecília Viela era a patricinha mais fajuta da história. Sem brincadeira! No ensino fundamental, ela era uma daquelas menininhas tímidas e estranhas, que não fazia amizade de forma alguma e sempre fugia dos trabalhos em grupos. Mas, o tempo foi passando e a beleza dela atraindo olhares, o que acabou transformando aquela garotinha inocente em uma mulher manipuladora, mimada e "vadia" — discordo do último termo, pois, ela está solteira e pode pegar quem bem entender, mas não é dessa forma que a sociedade enxerga.

    — Eu já dormir por muito tempo, acha não? — Respondi, encarando-lhe com um sorriso ladino. — Você fica linda de jaleco, Cece.

Ignorando-me, ela colocou uma bandeja com gelatina e uma garrafa de água no apoio da cama e verificou o medicamento no meu pulso enquanto evitava contato visual. Era sempre assim.

É fácil deixar-se levar pelas fofocas dos corredores. "Cecília, já está na sua lista?" Todo mundo conhecia a fama da patricinha mais piriguete que já estudou no San Georgino. Entretanto, eu sabia que isso tudo era uma farsa, ela só entregava-se ao primeiro que aparecesse para suprir a carência do pai e da irmãzinha que morreu de insuficiência cardíaca há três anos atrás. Cecília precisava ser o centro das atenções para se sentir amada e desejada, por isso, não ficava com o mesmo cara duas vezes. Seu lema era o seguinte: sem apego, sem sofrimento. E, ela seguia isso. Seguia de tal modo que ninguém nunca a viu namorando ou apaixonada.

    — Você vai ter alta amanhã. — Falou secamente, sem expressão. — Preciso ir olhar outro paciente, Benjamin.

Sua frieza comigo era tão comum quanto achar os valores de "x" e "y" nas atividades de matemática. O engraçado era que ela agia dessa maneira apenas comigo. Céus! O que eu fiz para essa mulher?

    — Cecília, espera... Preciso te fazer um convite. — Disse de uma vez, sem delongas.

Já estava treinando o pedido de desculpas para Anne-Marie e Rebecca, porém, eu precisava tentar mais uma vez com Cece. Era mais forte que eu. Sei que todos meus amigos já passaram uma noite com ela e fotos íntimas suas vazadas era o que mais havia nos celulares dos nossos colegas de classe. Entretanto, nada disso tinha importância. E daí? Toda mulher tem o direito de ser o que quiser, assim como nós, homens. Cecília era um exemplo de mulher decidida para o mundo, mesmo que fosse apenas um disfarce. Amarrava-me nas suas roupas curtíssimas nos finais de semana e nas suas espinhas que, por mais que ela tentasse esconder com camadas e mais camadas de corretivo e base, ainda sim, apareciam.

    — Se for sobre o baile, nem precisa perder seu tempo, Benjamin. — Afirmou, bastante convicta.

Quase ri da minha própria infelicidade, mas mantive-me sério, com uma sobrancelha arqueada e os lábios postos em retilínea.

    — Por que diabos você me trata assim? O que eu te fiz, Cecília?

    — Eu só não quero ser sua acompanhante. Não insiste! Não percebe como é inconveniente?

Flora, minha irmã caçula, era bastante intuiva e vivia dizendo-me que Cecília era apaixonada por mim, mas tinha medo de entregar-se e acabar tornando-se vulnerável a paixão. Talvez devesse possuir essa incerteza. Eu não me considerava um cafajeste, mas, também, não era um príncipe encantando. Sabe quando você vive em um meio termo? Nunca magoei uma mulher, no entanto, nunca amei de verdade. Nunca senti meu coração bater tão rápido por alguém ou minhas pupilas dilatarem quando a pessoa surgisse diante de mim. Anne-Marie foi uma linda e avassaladora paixão, mas não foi amor. Nós dois temos consciência disso. Nunca trocamos um "eu te amo", nem mesmo por mensagens de texto.

    — Anos atrás você era minha amiga, Cece. Só me diz se eu te fiz algo, assim, poderei ao menos me desculpar... — Abri um pequeno sorriso destinado àqueles olhos azuis cristais.

O que eu fiz a essa futura médica? Não consigo lembrar-me... só sinto que fora algo tão intenso que não sou merecedor de pelo menos 5 minutos de seu tempo.

    — Te mando uma mensagem amanhã à noite, Benjamin. — Respondeu enquanto girava à maçaneta da porta com deus miúdos dedos e retirava-se do aposento, deixando-me solitário e com a curiosidade estampada na testa.

Resolvi pegar meu aparelho celular que encontrava-se ao lado da cama e li algumas mensagens de texto. Rebecca mandou um áudio, perguntando como eu estava e Anne-Marie enviou-me alguns corações partidos, pedindo para eu visitar-lhe assim que receber alta. O resto foi de alguns amigos e professores, sem muita importância. Coloquei o fone de ouvido após responder meus fãs e deixei o remédio agir, rezando para acordar e esse pesadelo encerrar. Odeio a enfermaria! No entanto, parece que ela tem uma quedinha pelo ganharão aqui...

Às 20:00h, uma médica simpática e de cabelos grisalhos surgiu, informando sobre minha alta e passando recomendações. Eu tinha atestado, então, não poderia ir para as aulas no dia seguinte, tão pouco participar das atividades extracurriculares. De boa! O único problema era explicar isso para meu subconsciente, que insistia em atormentar-me, insinuando que eu não iria conseguir ficar acima da média se não assistisse as aulas, mesmo estando doente. Qual é? Me dá uma folga aí, cérebro. Só fiz ir para o meu dormitório, cumprimentar o Hans — meu colega de quarto roqueiro —, tomar uma ducha gelada e colocar um short para dormir. Estava com a cabeça explodindo e deixei isso claro enquanto comia um Snickers, mas, mesmo assim, o cacheadinho, vulgo Hans, resolveu atormentar-me, perguntando sobre caroço.

    — Mas você tem certeza que não sabe se ela tem companhia para o baile?

Afirmei com a cabeça, mastigando com vontade o chocolate para esconder minha face enciumada.

    — Sim, irmão. Ela não me disse nada...— Menti, dando de ombros.

Hans soltou um suspiro profundo e pôs-se a andar pelo quarto, deixando-me tonto. Ele era um rapaz esguio e alto, mais ou menos 1,90 de altura, com longos cabelos cacheados e dourados, ele mais parecia um anjo caído do que um aluno do San Georgiano. É, rapaz... preciso admitir, esse cara é lindo. Se eu fosse mulher ou homossexual, pegava com certeza. O que mais tornava-o misterioso era o fato dele nunca ter pego nenhuma garota daqui, apenas do convento que era localizado do outro lado da rua. Eu tinha pena das pobres donzelas que iriam tornar-se freiras, Hans só as usava para seu próprio prazer.

    — Hum, e a francesa? Não me leve a mal, vocês são ex namorados... — Falou, evitando contato visual. — Tenho certeza que ela não tem um par, e você não se importaria se eu a convidasse, certo?

Porra! Qual é a desse cara? Anne-Marie e Rebecca são minhas! Não vou entregá-las a um homem qualquer que só almeja uma noite de prazer. Levantei da cama e cruzei os braços, desafiando-lhe com o cenho franzido.

    — Eu vou levar Anne-Marie ao baile. Na verdade, vou levar Rebecca e Cecília também, colega. Sabe como é, né? Escolher só uma não é uma opção. — Falei pausadamente e meu rosto suavizou, sério.

Hans abriu a boca em incredulidade e, logo aplaudiu-me, com uma expressão brincalhona. Fiz merda, certeza! Como vou dar conta de três mulheres completamente opostas e que se odeiam? Alguém vai passar mais um tempo na enfermaria... algo me diz que esse indivíduo azarento, sou eu.
   
    — Corajoso, héin parceiro? Se precisar de uma mãozinha, é só chamar. — Ele piscou e foi para o banheiro, provavelmente mijar ou rir da minha cara de palhaço.

O resto da noite passou rapidamente, logo o toque de recolher havia tocado. Eu estava na janela do dormitório, observando atentamente as estrelas e com os pensamentos longes, em Minas Gerais, numa clinica especializada no Alzheimer. Meu coração doía de saudade, cada batimento cardíaco era como uma martelada. Eu queria ver a mamãe! Tocar nos seus cabelos louros, beijar sua testa, passar os dedos nas suas covinhas e contar-lhe como Flora está grande, praticamente uma moça. Minha irmã completou 14 anos recentemente e abandonou o San Georgiano para morar com minha tia fora do Brasil, pois, ela havia arrumado um namoradinho e meu pai, raivoso, com medo de uma futura gravidez indesejada, mandou-a para longe. É, complicado... eu meio que me senti culpado pela sua partida, não queria deixar minha princesinha da meleca ir embora, mas foi necessário. Talvez, longe de mim, ela seja alguém na vida. Eu tenho orgulho da minha irmã. E, esse orgulho fez com que eu fechasse os olhos para os problemas que a cercavam. Flora, quando andava com Cecília e seu grupinho, havia beijado tantas bocas que era capaz de ter contraído uma herpes. Sério! Não fui capaz de controlá-la e arrependo-me disso. No entanto, por tudo que passamos juntos, eu a vislumbrava com uma garota extremamente madura e consciente, enganei-me feio. Se meu pai não intervisse, hoje em dia, eu já seria chamado de "Titio Ben".

Acordei no dia seguinte e Hans já havia saído para aula de educação física na quadra D. Resolvi arrumar-me e ir até o refeitório, para o desjejum. Olhando-me no espelho do banheiro, reparei que meu cabelo precisava de um corte e as olheiras reapareceram, fazendo com que meus olhos cor de mel perdessem o brilho.

No refeitório, coloquei na minha bandeja: um copo de leite, duas barrinhas de cereais e uma banana, enquanto Thiago enchia seu prato com coxinhas, refrigerantes e alguns doces. Uau! Juro que queria ter um apetite desses...

Sentei-me em uma mesa e Anne-Marie logo apareceu, raivosa.

    — Idiot! Idiot! Idiot! — Disse em francês, quase gritando, enquanto se sentava à minha frente. — Diga-me que está bem, por Dieu!

Abri um sorriso e peguei na sua mão, conduzindo-a até meus lábios para depositar um beijo.

    — Estou bem, francesinha. — Afirmei, sorridente.

    — Eu preciso te encontrar hoje à noite, Ben. Precisamos conversar...

Nesse mesmo instante, meu celular vibrou e a notificação de uma mensagem despertou minha atenção, fazendo-me produzir um sinal com a mão, pedindo um minuto para à morena diante de mim.

     "Podemos nos encontrar hoje às 19:00hs? Se não tiver meu número salvo, é a Cecília".
   
Puta merda! Olhei rapidamente para Anne-Marie e cocei a cabeça, totalmente confuso.

    — Que horas mais ou menos? — Perguntei.

    — Estava pensando em umas 19hs, por quê?

    — É muito importante?

    — Se non fosse, eu te falaria agora. É sério, Ben. Preciso de ti hoje.

Antes que eu pudesse responder, uma mãozinha tocou no meu ombro e pelo revirar de olhos da francesa, logo soube de quem pertencia aqueles toquinhos de unha: Rebecca.

    — Já estou indo. Estamos combinados, né? Te encontro no jardim do 2° ano. Tchau para quem fica. — Anne-Marie despediu-se, enquanto saia, sem cumprimentar caroço de azeitona.

Rebecca aproveitou a situação para se sentar ao meu lado e fazer cara feia enquanto observava a francesinha desaparecer no meio da multidão de alunos.

    — Como você namorou essa cara de espinha? Você merece coisa melhor, pateta.

Iniciou-se a onda de ofensas gratuitas, apenas dei uma mordida na maçã e encarei-lhe, com os olhos meticulosos.

    — Não fala assim da minha francesa, caroço. — Adverti.

Rebecca revirou os olhos e roubou minha maçã, deixando-a de escanteio na sua bandeja laranja.

    — Você está melhor, Ben? Fiquei com medo de você tentar algo grave, como da última vez... Já pediu transferência de quarto? Você pode correr perigo naquela janela.

    — Está tudo bem, caroço. Relaxa! Eu sei me controlar, não será como da última vez.

    — Você disse isso da penúltima vez, cretino.

    — Dessa vez eu te prometo!

O sinal tocou para o 2° horário e minha ruivinha levantou-se, levando a maçã consigo.

    — Quero te encontrar hoje à noite, pode ser? Preciso te falar uma coisa. Eu vim falar agora, mas, como o sinal bateu...
   
    — Caroço, não vai d...

    —  Tchau, bebê. Até mais tarde. Vou lá no seu quarto às 19h.

Antes que eu pudesse impedi-la, ela deu as costas e saiu apressada para aula de história. Por Deus! O que eu faria agora? Precisava fazer uma escolha. Escolher uma das três. E, consequentemente, precisava responder a mensagem de Cecília.

Passei as mãos nos cabelos e suspirei, pedindo orientação aos céus. Será que minha escolha será a certa? Só o destino para responder...

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Notas Finais: Olá, meus leitores. E aí, com quem será que Ben irá se encontrar? Vamos descobrir no próximo capítulo haha.

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⏰ Última atualização: Aug 24, 2017 ⏰

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