Mamihlapinatapei

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Mamihlapinatapei (n.): O ato de olhar nos olhos do outro, na esperança de que o outro inicie o que ambos desejam, mas ninguém tem coragem de começar.

Uma visão do passado

"Vai, Aninha! Você é a única que ainda não beijou..."

"Por que eu não quero!" respondi, envergonhada e firme. Bárbara e Vivian reviraram os olhos e balançaram o corpo para frente. Olhei para o garoto e, quando vi que o mesmo me olhava, ruborizei. "Ele é do sétimo ano..."

"Por que você não tem coragem, e o que é que tem?! Um ano a mais só que ti!"

Encarei Bárbara e respirei fundo, sussurrando um "tá bom". Ela gargalhou e me puxou pela mão, indo ao encontro do garoto. Ele me encarou e me estendeu a mão, eu, acanhada, a segurei e fomos até o parquinho. Encarei o uniforme, minhas amigas, o garoto, e quando eu menos percebi, estava beijando pela primeira vez.

Primeiras vezes são sempre complicadas.

Deixa que eu seja eu

E aceita

O que seja seu

Ana

Existem sorrisos de todos os tipos: preocupados, despreocupados, falsos, verdadeiros, sorriso que traz paz, sorriso de alma. Existe o sorriso favorito – aquele que é o que mais nos importa –, o sorriso que nos remete uma lembrança de casa e de saudade.

As linhas dos olhos se enraízam nas cores das ideias e pintam sorrisos.

E o sorriso que Vitória me entregava nesse momento me remetia a todas as sensações que um mundo inteiro poderia vir a me dar.

"Por que me olha assim?" a escutei perguntar. Em sua voz havia uma rouquidão até então desconhecida para mim, o que me fez arrepiar.

"Por que você é você."

"E o que tem de demais em ser eu?" Pergunta, pendendo a cabeça para o lado. Acompanho o ato com o olhar.

"Tudo."

Vitória alarga mais o sorriso e se aproxima. Deposita um beijo em minha testa, ombros e bochecha. Fecho os olhos e ela sussurra: "você é linda, Ana Clara. E se soubesse o que eu penso de ti... Ah, se soubesse..."

"Por que não me diz?" indago, ainda com os olhos fechados.

"Por que quero que descubra."

E, da mesma forma em que se aproximou, sinto Vitória se distanciar. Abro os olhos e suspiro, vendo-a apoiar-se em minha janela.

"NaClara, vem cá..."

"Que foi?" pergunto quando me aproximo. Vitória encarava um grupo de jovens que brincavam em meio à viela.

"O que você vê quando olha pra essas crianças?"

"Como assim, Vitória?" pergunto, franzindo o nariz

"Não. O que tu sente quando olha pra cada canto desses pequeno."

Suspiro e os encaro. Sinto os olhos de Vitória queimarem minha pele e abaixo o olhar.

"Esperança." Digo, "minha mãe uma vez disse que a gente tem que aprender, que nem tudo que queremos, podemos ter. Temos que parar de ser cabeça dura, viver mais, se importar menos com quem não dá a mínima pra gente. Porque perdemos tanto tempo amando coisas que não são mais nossas, perdemos tanto tempo sofrendo por sentir demais, por se importar demais. Penso que essas crianças acabaram de começar a vida e mal sabem que o segredo é só viver."

Vitória se manteve calada, com a cabeça apoiada em sua mão, observando cada movimento que eu fazia.

"Uma pessoa me falou..."começo e ela arqueia a sobrancelha, risonha. "Que um dia a gente acha nosso ninho, um dia a gente encontra o sentido de tudo ter dado errado antes. Pode demorar anos, dias, ninguém sabe."

"Se você pudesse dizer algo á essas crianças, o que diria?"

"Que elas não podem desistir; não desista jamais. A vida é uma caixinha de surpresas, um eterno perde e ganha. Podemos perder hoje, mas amanhã podemos ganhar o dobro do que perdemos."

Calamos.

O silêncio do meu quarto se torna confortável depois de muito tempo. A risada dos jovens á rua, as sirenes das ambulâncias na avenida, o canto dos pássaros do meu vizinho; nada é tão mais importante que o estar ali, agora, neste exato momento.

"Por que você não segue eu próprio conselho?" pergunta.

"Por que ver melhora na vida do outro é mais fácil do que ver na nossa."

A resposta sai quase que de forma súbita. Vitória me fita e eu me deixo escorrer. Sinto algumas lágrimas descerem, assim como o astro que agora se alojara no céu, dando tons mais escuros para os cantos daquela cidade.

"Sabe o que eu acho, NaClara?" a escuto perguntar e nego com a cabeça.

"Neste exato momento estas crianças correm de um lado ao outro e seus sorrisos reluzem mais que o sol escaldante que antes estava aqui. Nessa mesma hora um rapaz faz o gol e seus gritos de alegria ecoam pelos quatro cantos enquanto seus amigos o abraçam. A moça tomando sol, sorri entre uma das frases de um livro, as águas cobrem os pés do casal que se beija, o ambulante que sorri a cada um dos seus produtos vendidos, dois surfistas deixam suas pegadas na areia enquanto apostam uma corrida, a baiana de acarajé vende o sorriso em seus tabuleiros, e eu estou aqui, com você, disfrutando disso tudo que a gente chama de vida. Eu tô aqui, nesse enlaço, e com esse sentimento que esquenta minha alma, o mundo me parece não ter nenhuma relação com a tristeza."

Meus olhos já haviam virado rio, e, quando vi, a camisa de Vitória recebia cada corrente de maré. Não havia percebido que Vitória agora me abraçava e eu tremia em seu abraço. Vitória era turbilhão de sentimentos e pura razão e luz. Em tão pouco tempo eu havia desfrutado de sensações desconhecidas e inimagináveis e eu não sabia de que forma eu poderia vir a retribuir.

Agora, a lua já havia se posto, e eu sentia a respiração de Vitória calma em minha nuca.

"NaClara?"

"Hm." Produzo um som com a boca em meio as lagrimas e Vitória suspira.

"Pela janela do meu quarto da pra ver a lua. Eu vejo a lua no meio dessa imensidão de tons de preto/cinza que eu sequer sei nomear. E a luz da lua chama atenção, como o seu sorriso chama atenção e se destaca no meio de todas essas pessoas que eu sequer sei quem são. E não, não quero saber. Mas o que eu quero realmente saber é se um dia você vai me deixar conhecer cada uma dessas suas fases." Diz e eu continuo a encarar, atenta em cada palavra.

Vitória respirava de forma descompassada e eu também. A senti aproximar-se devagar do meu rosto e, em meio á uma piscada ou outra, sentir o gosto salgado de uma lágrima se misturar ao doce dos lábios seus. Não houve aprofundamento. Era leve, agridoce e emotivo.

Era apenas eu e a garota dos cachos que de forma inesperada se fez presente em minha vida, partilhando de algo desconhecido.

Vitória apoiou o queixo em minha cabeça e me apertou em seu abraço.

"Dizem que a lua influência no crescimento das marés. E desde que você chegou, tudo aqui dentro de mim é maré cheia."

AntídotoOnde histórias criam vida. Descubra agora