A Primeira Verdade

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Sentindo o corpo oscilar pela força do vento que soprava no alto da ponte, Jeremias apagava seu último cigarro. Soltou a fumaça lentamente, observando sua cor e seu cheiro, e permitiu-se sorrir ao pensar que a grande obra de sua vida havia sido concluída.

Três anos antes, em um diálogo filosófico que propôs à esposa no meio da madrugada, listou quais seriam as verdades mais duras com as quais o ser humano precisa lidar em sua existência. Em terceiro lugar, decidiram, é que estamos sozinhos no mundo. Não se pode afastar o fato de que amigos que julgamos eternos se perderão lentamente, que nossos pais vão morrer, que as pessoas que hoje parecem parte indelével de nossas vidas poderão se converter em completos estranhos em poucos meses. Nascemos sozinhos, morreremos sozinhos.

Em segundo lugar: somos naturalmente egoístas. O que importa, afinal, é a própria sobrevivência, e os problemas dos outros só nos tocam superficialmente. Encontrar alguém com quem nos conectemos de forma tão poderosa que a Segunda Verdade possa ser refutada é um evento tão raro que mal vale ser listado como provável.

E, em primeiro lugar, a verdade mais difícil é tão simples quanto terrível: todos vamos morrer. Crescer, estudar, trabalhar, são somente distrações de um fato do qual jamais escaparemos e que, por si só, faz a própria existência não ter sentido.

Ao menos essa era a sua forma de enxergar a vida. A melancolia sempre foi sua companheira e pensar na Primeira Verdade lhe trouxe incontáveis insônias, uma das quais o presenteou com uma inspiração poderosa e repentina. Essa ideia o conduziu a uma decisão que se transformaria no maior projeto de sua vida: ele se tornaria imortal.

Durante os anos seguintes, todo o tempo despendido com as necessidades básicas foi subtraído tanto quanto possível. Comer, dormir e trabalhar eram apenas lapsos em sua rotina, que noite e dia se traduzia em ideias, escaletas, anotações e longos solilóquios sobre a história que queria contar ao mundo.

Quando a obsessão dominou cada quadrante de sua mente e se estendeu a quem o rodeasse, Jeremias perdeu família e emprego. Os amigos ele mesmo deu conta de dispensar.

Sem distrações seculares, isolou-se no antigo sítio de seu avô e enfim pôde direcionar cada pulso de energia para seu projeto de derrubar a Primeira Verdade.

Três anos depois, com metade do peso e o dobro de olheiras, ele estava finalmente convencido de que a imortalidade se achegava. Aquela não era sua primeira viagem: os dois ou três livros que havia publicado às vezes lhe rendiam alguns centavos, que chegavam em transferências da editora a cada trimestre. No entanto, agora julgava os próprios textos medíocres e tolos, jamais comparáveis ao que havia alcançado com a obra atual. Não haveria fronteira nem expectativa que não pudesse alcançar. Seu nome estaria ao lado de Clarice e Machado.

Escreveu o último capítulo em um êxtase que lhe anuviou a mente, o que o impediu de digitar a última frase do livro. Com o rosto lavado de lágrimas – de alegria, de alívio ou de dor? Não saberia dizer –, respirou longamente enquanto relia o último capítulo. Lutava contra o paradoxo de não querer terminar. Faltava-lhe coragem, mas sabia que sua vida havia sido somente um ensaio para aquele exato momento que experimentava. Sorriu e, por fim, escreveu as últimas palavras (que não eram suas, senão de Jeremias, o profeta):

"Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e perverso; quem o conhecerá?"

Fechou o documento, anexou-o a um e-mail cuidadosamente elaborado e enviou-o às poucas pessoas que lhe restavam, rogando-lhes que espalhassem aos quatro ventos o grande trabalho de sua vida.

Jeremias saiu para a ruazinha de terra seca e vazia e caminhou até o alto da ponte que encimava um trilho de trem desativado. Não pôde evitar o drama de abrir os braços e, de olhos bem fechados, permitiu que o ar frio da noite lhe enchesse os pulmões antes de inclinar o corpo para frente e deixar-se ir.

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