Ele já chegou grande. Era um bicho enorme, que sobre duas patas podia me olhar nos olhos, e ele sabia como eu adorava quando isso acontecia. Ao despertar, o dia ainda escuro, ele me recebia batendo as patas anteriores em meus ombros e me lambia o rosto.
Também era grande apenas por estar. O border collie enchia a casa onde estivesse com seu espírito, uma presença que não se ignorava. Era um modelo dos caprichos da natureza.
Shakespeare era grande também pelo peso de suas ascendências. Os que vieram antes exibiam o prestígio dos concursos, das competições entre semelhantes que ostentavam uma inteligência que nos meninos só chega mais tarde. Os pelos pretos e brancos esvoaçando nas corridas, nos saltos, nos rastejares, e então os aplausos de seus humanos apaixonados.
Ele era grande. E entrou em minha vida quando eu me sentia muito pequeno.
Ouvi certa feita que os cachorros vivem menos pois aprendem a amar mais rápido. A vida e seus percalços não seriam precisos. Sorte a deles, se a mais dura das lições já é-lhes inata!
Ele trouxe em seus olhinhos todo esse amor de que eu tanto carecia. Não é que não o sentia de meus iguais, mas sozinho se me abriam as janelas para as sombras entrarem, e logo me via em uma melancolia que me prendia ao chão, pegajosa.
Shakespeare apenas era. Deitava-se ao meu lado com o focinho sobre minha barriga e fechava os olhinhos enquanto eu brincava com suas orelhas. Daí começava a se apagar a chama branda que me ardia por dentro e me angustiava, e de repente eu era leveza e amor.
Embora eu o tivesse e ele a mim, pensava se o mesmo vazio de onde eu saía e em que entrava em seguida também assaltava-o. Seria vaidade esperar que eu tivesse para ele o mesmo poder que ele tinha para mim, se é que cães vivem sombras como as vivem os homens; mas pensava se, nos dias de casa vazia, cada humano em suas tarefas de humano, Shakespeare também não se abria para suas incertezas. A diferença deve ser que homem teme o futuro e bicho teme o presente. A dúvida vem do perceber-se só.
Os ventos sopraram os anos adiante e o branco da velhice chegou. Os olhinhos de Shakespeare já eram emoldurados por fios prateados, o focinho preto destacado dos pelos grisalhos que cobriam a pele já não tão firme. Seus dias eram deitar-se ao sol, a cabeça sempre erguida em honra com os olhos fechados, e em silêncio achegar-se às sombras para descansar o esforço de ser minha salvação.
Os achaques da velhice se apresentaram num sopro da manhã ensolarada que já era dele. Não desejava mais o que até ontem lhe era caro: a base da escada de onde observava o céu, a comida, as brincadeiras comedidas... Apenas a espera era seu interesse. Os dias levaram o brilho dos olhos que os meus refletiam e, em uma manhã nublada de domingo, ele não acordou mais.
Encontrei-o e não o reconheci por um segundo terrível. Ele estava deitado ao lado de sua cama rodeado por suas sujeiras e decidi que seria indigno para o grande Shakespeare ir-se daquela maneira. Respirando fundo e sentindo o rosto quente e molhado, dei-lhe seu último banho, sequei seu pelo e o escovei. Corri até a gaveta e peguei sua gravatinha, usada somente nas ocasiões especiais.
Levei-o, e, como se viajasse ao próprio sol que lhe foi companheiro em cada manhã, teve o corpo cremado e as cinzas levadas para um jardim onde se convergeria à natureza que o trouxe dez anos antes.
Naquela noite dormi vazio. Não conseguia afastar os pensamentos de que não teria um lugar para visitá-lo e prestar homenagens. Sendo cinza, sendo terra, não havia prova material de sua existência a não ser lembranças e fotografias. Neste mundo ele não estava, mas para sempre estaria no meu.
Ele era grande. E saiu de minha vida me deixando maior do que eu jamais seria.
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Breves Relatos de Morte
Storie breviÉ a morte que nos faz humanos. Ainda assim, ela nos aterroriza, mesmo que seja, talvez, a única certeza que temos na vida. Este livro traz pequenos contos que, em 666 palavras, enfrentam essa verdade em todas as suas formas: uma tragédia, um suicídi...