Vida na Rua dos Mortos

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Quando se tratava de civilizações pré-colombianas, o nome María León Ponce era o primeiro a ser lembrado. Não era apenas por ela ser uma das maiores autoridades nessa esfera, mas principalmente por ser autora da descoberta de uma divindade que até então estava oculta ao mundo. Desde esse dia, voltou coração, mente e força a aprofundar-se na história dessa figura que, por razão que ela mesma desconhecia, passou a lhe ocupar os pensamentos noite e dia.

A descoberta da estátua da Grande Deusa em Teotihuacán acendera na comunidade científica local uma discussão que ela se empenhava em terminar: por um lado, alguns arqueólogos defendiam que a Grande Deusa era somente uma invenção para o que seriam na realidade seis outras divindades menores, mas unidas em uma tentativa de elevar uma figura feminina ao posto de principal deidade de seu tempo, como uma resposta aos apelos por representatividade que inundavam a sociedade; por outro, um grupo mais tímido e não por acaso formado por cientistas mulheres defendia sua veracidade e trabalhava para coligar evidências da relevância máxima da deusa aos povos que a cultuavam.

María, desde então, ganhara um novo projeto de vida: trazer a público a existência dessa deusa e tornar seu nome tão conhecido quanto seus companheiros de panteão.

Em seu íntimo, porém, a arqueóloga não compreendia a força que a tomava e, embora não fosse segredo sua dedicação à imagem da deusa, era quando a noite chegava que sentia aquela convocação clamar cada fibra sua – e, por mais que tentasse restringir seu interesse à Academia, a verdade é que se sentia irrevogavelmente embevecida pela empreitada de trazer a figura da Grande Deusa à luz.

Com o tempo, à medida que murais eram descobertos e associados à deusa graças às imagens de aranhas que sempre se faziam presentes em cada escultura ou painel, tornando-se seu principal atributo comum, a história de que as primeiras civilizações locais eram regidas pela deusa da agricultura, e não pelo deus da chuva, como até então se ensinava pelo país, os nomes da arqueóloga e de sua Grande Deusa espalharam-se primeiro no próprio México para então, como ramos, espargirem-se pelo mundo.

Naquela manhã, María despertara ainda sentindo a inspiração que lhe arrebatava às noites e, sabendo que haveria lua cheia e que ela coincidiria com o perigeu, cedeu ao vislumbre de visitar o templo naquele dia de Superlua e pôs de lado suas pesquisas para tomar parte em uma excursão a Teotihuacán.

Ao chegar, decidiu caminhar sozinha pelo sítio. Atravessou a Rua dos Mortos e viu-se aos pés da Pirâmide da Lua. Olhou para os lados e, ao ver que não era observada, correu contígua à base da construção até a parte de trás, em uma área proibida para visitantes, na qual encontraria silêncio para suas contemplações. No entanto, não se via como uma mera turista, e sim como uma escolhida da própria deusa para trazê-la à vida.

Embora cética, sentiu-se inspirada a prostrar-se de joelhos e ofereceu à Grande Deusa uma silenciosa e enérgica prece. Percebeu-se aos poucos tomada por um torpor que lhe fez se perder nas palavras e, com um baque, tombou para o lado desacordada.

Já era noite quando María despertou. Apressou-se até a frente do monumento apenas para se certificar do que já sabia: estava sozinha e somente na manhã seguinte encontraria socorro.

Olhou para o alto e, extasiada pelo que viu, esqueceu-se de sua desventura: a Superlua fulgurava sobre o cume da pirâmide e, como se tomada por uma força maior que si mesma, pôs-se a subir os degraus que conduziam ao alto da construção.

O cume a recebeu com uma flor que estranhamente brotava do chão de pedra e que parecia emanar uma leve luminescência – se era da própria lua ela jamais saberia dizer.

María León Ponce agachou-se para colhê-la e, ao fazê-lo, seu corpo foi arrebatado por um sopro impetuoso que a fez congelar. Um átimo depois, ela sorriu e, vitoriosa, a Grande Deusa pôs-se a descer os degraus rumo à civilização.

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