Lutando para impedir que as lágrimas escorressem pelo rosto e manchassem a cuidadosa maquiagem, Marisa observava em seu reflexo os detalhes do vestido branco.
Tossiu, incomodada, e foi tomada pelo efervescente mal-estar que a acompanhava nos últimos dias. Não achou que um médico fosse necessário e decidiu que alardear o tema traria uma atenção que não queria às vésperas de seu casamento.
A cerimônia seria simples: vinte convidados para a noiva e vinte para o noivo. Flores brancas decoravam a capela e, quando entrou ao som de seu hino favorito, contemplou com gratidão todos os olhares que a miravam com admiração e felicidade.
Estava consumado: Jonas seria seu nesta vida e na próxima. Fora criada para acreditar na eternidade e, em sua fé, além do casamento, a ordenança de selamento seria capaz de unir o casal mesmo após a morte.
— Agora eu já posso morrer — brincou, sentindo a felicidade manifestar-se plena.
Uma semana depois, Marisa foi internada.
— É uma bactéria chamada KPC — explicou a médica. — É resistente a antibióticos e a recuperação costuma ser difícil. Além disso, ela está com pneumonia e uma infecção que estamos tentando impedir que se espalhe.
À medida que o mundo de Jonas se estilhaçava, ele orava em desespero. Enquanto se dedicava a jejuns e prostrações em uma tentativa de compreender a vontade de Deus naquela tragédia, a KPC ganhava cada vez mais força e aos poucos vencia a batalha.
Na manhã em que adentrou a UTI e encontrou Marisa pálida, magra e com o antes impecável rosto tomado por manchas, decidiu que era o momento de pôr à prova o grande trunfo de sua igreja: o sacerdócio e suas bênçãos. Chamou os dois missionários de sua ala e rogou-lhes que a abençoassem e curassem do mal que a acometia.
— A fé opera milagres — prometeu Élder Mesquita. Observando Marisa dormir, Élder Castilho permaneceu em silêncio, sem poder concordar com sinceridade.
Ao redor, um pastor protestante orava por um senhor sedado em brados emocionados que ecoavam por todo o piso. Ao lado, um grupo de crianças entoava um hino para outro paciente.
Élder Castilho havia deixado toda a sua vida para trás para ensinar aos outros as próprias verdades. "Sabemos o grau de conversão de uma pessoa pelo desejo que ela tem de pregar o evangelho", foi um mantra que escutou a vida toda.
Era exemplar no cumprimento de todos os aspectos da dura vida de missionário, mas por seus frequentes ímpetos de racionalidade era incapaz de aceitar muito do que ele mesmo pregava. Acreditava no livre-arbítrio, e, antes de tudo, no acaso: duvidava do destino e da onisciência de Deus. Se Ele conhecia cada partícula de nossa alma, se sabia passado, presente e futuro, se sobre tudo tinha ciência, que bem faria nos testar?
E, agora, por que permitir que Marisa nascesse, crescesse, se casasse e se selasse para, em seguida, pôr à sua frente um obstáculo que parecia impossível transpor?
O quadro dificultava enxergar o equilíbrio entre justiça e misericórdia. Mesmo assim, tinha um dever a cumprir; aquilo para o que havia sido chamado.
Postou-se de um lado da maca e seu companheiro, do outro. Começou o ritual ao pingar na cabeça de Marisa uma gota de óleo consagrado e, com as mãos sobrepostas sobre os cabelos, começou a falar.
— Marisa Serra, pelo poder e autoridade do sacerdócio de Melquisedeque, imponho as mãos sobre sua cabeça para lhe conferir esta bênção e rogo para que sua passagem pela Terra se encerre sem dor, e para que quem aqui permanecer possa aceitar com leveza a vontade do Senhor. Em nome de Jesus Cristo, amém.
Quando abriu os olhos, viu o olhar de Jonas posto em si, levemente inquieto, mas da mesma forma agradecido.
— Pensei que viríamos aqui para curar a Marisa — sussurrou Élder Mesquita, parando de andar quando passaram pela porta.
— E viemos — respondeu Élder Castilho, sem interromper o passo, assim que o agudo contínuo do monitor cardíaco soou e um choro desesperado começar a ecoar pelo frio corredor do hospital.
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Breves Relatos de Morte
NouvellesÉ a morte que nos faz humanos. Ainda assim, ela nos aterroriza, mesmo que seja, talvez, a única certeza que temos na vida. Este livro traz pequenos contos que, em 666 palavras, enfrentam essa verdade em todas as suas formas: uma tragédia, um suicídi...