Jerusalém - Parte 1: Olhos do Basilisco

130 2 0
                                    


Um grifo de madeira bateu as asas descontroladamente, chocou-se contra o teto e caiu na mesa em que a jovem pesquisadora Ayat Sarhka fazia uma descoberta que redefiniria para sempre os estudos sobre a Catástrofe. Ela deu corda de novo no pequeno grifo e o lançou na direção de seus pôsteres de filmes do século anterior. Havia vasculhado diversas matérias históricas num computador antigo até que se deteve numa entrevista de 2078, catorze anos antes da Catástrofe, com um desenvolvedor de sistemas inteligentes. Incidentalmente, ele mencionava que a humanidade já possuía tecnologia para desenvolver uma inteligência artificial que transcendesse nossas concepções de matéria, tempo e espaço.

Muito além de lançar trovões, pensou ela. Como não tinha lido nada sobre isso antes? Seria engraçado ouvir a opinião daquele herege do Ventania. Aposto que diria "não há evidências, Ayat, por que especular?"

Riu. Parecia ouvir o som das respostas confortantes do seu assistente aéreo ecoando no plástico branco que delimitava seu quarto, e o sorriso se desfez. Retorceu uma mecha de cabelos frente ao rosto, ignorando os fios que pousavam no vestido tais quais riscos a lápis.

— Por que estamos passando por isso?

Não direcionou a pergunta a ninguém. Imaginou, porém, que se houvesse alguém que a pudesse entender, seria a entidade transcendental teorizada naquela reportagem.

***

A um gesto, a porta de seu quarto deslizou para o lado, abrindo passagem para o corredor identificado, por números brancos sobre faixas pintadas no chão, como 23. As faixas seguiam perpendiculares às paredes, de corredor para corredor, sendo que algumas delas curvavam no caminho para cada porta. Ela dobrou em diagonal no corredor 5 até seu centro: um aposento circular, preenchido de umas duzentas mesas de trabalho, quase todas ocupadas. Além do acesso aos corredores, suas cercanias também comportavam salas reservadas à direção. Ante uma delas, acionou o interfone.

— Sarhka — disse Noah Cide, o Diretor-Geral do Globo de Pesquisas, ao recebê-la. — Como vai a pesquisa das reportagens, alguma luz?

— Não encontrei nada específico. Mas queria sugerir um redirecionamento.

— Outro? — Suas rugas, já notáveis, salientaram. — Sarhka, você sabe o quanto eu admiro seu trabalho, mas não adianta revirar a história.

— Eu prometo que não é nada demais. Não vai interferir nas pesquisas em andamento, é só uma complementação.

— Por favor — disse Cide, após sorrir e suspirar, compassivo, apontando a cadeira à sua frente.

Ayat sentou e lhe entregou a minuta do relatório que concluíra algumas horas antes. Em seu cabeçalho, lia-se:

"Data: 8 de janeiro de 2101

Autora: Ayat Sarhka

Assunto: Proposta de pesquisa sobre motivações da Catástrofe."

— Motivações? Mas a tese da aposta é unânime.

— Eu sei. Mas temos outras evidências. Um grupo pode ter deliberadamente planejado a Catástrofe, e programou o Basilisco para esse fim, não necessariamente por medo que outros o criassem antes.

— Não entendo.

— A primeira ação do Basilisco que se tem notícia foi a construção e lançamento de satélites. Em menos de uma semana ele tinha furado nosso isolamento köttrymd e reconectado todas as microrredes locais.

— É claro. Inteligências artificiais avançadas são rápidas nas decisões.

— Não é o que as pesquisas têm indicado. O Basilisco domina todos os nossos sistemas. Mas ele ataca a esmo, é meio... Burro. Estou quase certa, Cide, que ao menos as ações iniciais dele foram especificamente programadas por humanos.

A Terra PrometidaOnde histórias criam vida. Descubra agora